05/12/13

Alien³ - A Desforra - David Fincher - 1992/2003

Calhou ao estreante David Fincher a tarefa ingrata de dirigir em 1992 o terceiro capítulo da saga Alien(s), após os sucessos críticos e comerciais de Alien - O Oitavo Passageiro (Ridley Scott - 1979) e Aliens - o Recontro Final (James Cameron - 1986). Emparedado entre um argumento que teve de reescrever, por se encontrar  incompleto quando as filmagens começaram, e a pressão dos estúdios que não lhe permitiram o controlo criativo sobre o filme, Fincher acabou no final por ver a obra editada contra sua vontade e decidiu cortar quaisquer ligações subsequentes ao projecto, recusando até participar na elaboração de uma versão alternativa mais completa, o "assembly cut" em 2003, numa altura em que já havia realizado Se7en - Sete Pecados Mortais (1995) e Fight Club - Clube de Combate (1999) e pertencia à elite de grandes realizadores a trabalhar em Hollywood. É a versão "assembly", com mais 30 minutos de filme do que a "theatrical" original, que será abordada neste texto.

Apesar de todos os problemas que atrasaram e condicionaram as filmagens, Alien³ é um estimulante capítulo de continuação da saga, com o seu quê de cunho pessoal diferenciador, mas aproveitando bem o legado deixado pelas versões de Scott e de Cameron, uma vez que se serve de elementos de cada uma delas para construir o que pode ser interpretado como o fecho de um ciclo (a ver sobretudo com a personagem central). Devido à dimensão social e à representatividade dos vários papéis, quer físicos, quer simbólicos, que Ripley (Sigourney Weaver) vai assumir, o argumento desta terceira incursão é o mais denso, rico e sugestivo de toda a série, pese embora a escolha polémica de sacrificar, logo no início da fita, Hicks e Newt, os dois elementos humanos que haviam sobrevivido ao final de Aliens juntamente com a heroína. Nesta vertente, Alien³ oferece-nos uma personagem principal em estado de graça, e em mais do que um sentido - Ripley tem direito a uma despedida digna do estatuto que foi conquistando ao longo da série, percorrendo um lento mas firme caminho desde as trevas em direcção à luz, e carregando agora o peso da salvação da humanidade às costas.



Ripley começa por aterrar (literalmente) no patamar mais baixo da hierarquia da condição humana, numa espécie de esgoto da sociedade, um complexo prisional de máxima segurança situado nos confins da galáxia, habitado por um grupo de (sic) "assassinos, violadores, pedófilos e ladrões", um local sombrio de aspecto vagamente medieval, em que atmosfera opressora resulta tanto dos cenários dantescos quanto de um clima psicológico adverso, e onde não se acham outras mulheres - um minor detail que determina imediatamente uma alteração comportamental fracturante na seio da comunidade que por lá sobrevive. Para além do evidente problema de afirmação e estatuto social, que passa mais uma vez pela de conquista de respeito e até de necessário espaço orgânico dentro de um grupo inicialmente bastante hostil (recorde-se que no segundo capítulo da saga a presença de um forte contingente de comandos militares na missão já a colocara em situação semelhante), e para além do confronto físico desigual com um novo "xenomorfo" que vai dizimando a população da colónia, Ripley tem, a partir de certa altura, ao aperceber-se de que é "mãe", de lidar com um dilema que a transcende. De um lado está a sua vida e do outro está a sobrevivência de toda a raça humana. A partir daqui o filme ganha uma força espiritual relevante e concreta: aquilo que até então não passava de um mero decoro narrativo (a questão da fé e da devoção religiosa abraçada por alguns elementos da prisão) passa a ter um significado explicitamente bíblico: há que impedir o nascimento do anticristo (não é por acaso que alguns reclusos vêem no alienígena o diabo), e para isso nada melhor do que o sacrifício e martirização do elemento psicologicamente mais forte - aquele que desequilibra os pratos da balança- , mas não sem antes o fazer passar pelas devidas "tentações". O clímax do filme e a dimensão trágica transcendental que a personagem alcança podem ser comparados com os da figura central em A Paixão de Joana D'Arc, a obra-prima que Carl Theodor Dreyer dirigiu em 1928. As imagens sugerem uma aproximação que não parece descabida.









A figura do criador de Bishop (Lance Henriksen) representa neste contexto o representante de uma obscura instituição corporativa, o elemento tentador, aquele que oferece a possibilidade de Ripley poder viver, mas em troca de um logro, tal como o grande inquisidor faz a partir de certa altura no filme de Dreyer: "é tudo tão simples... basta renunciares aos princípios que defendes e sobreviverás". Tanto Joana como Ripley acreditam na existência da vida para além da morte, a primeira pensa no amor de deus e no paraíso e a segunda na preservação da humanidade. Ambas acolhem o devir decorrente do sacrifício num estado de serenidade e paz interior.

De referir que o ritmo narrativo, lento, pausado, irregular, que privilegia o diálogo ao movimento, e que não nos oferece uma edição dinâmica intensa, capaz de no "colar ao ecrã" (apesar dos ângulos invulgares e das perspectivas inclinadas), é bem diverso do capítulo anterior, e até do inicial, e talvez essa seja outra das razões que tenham levado a uma má apreciação por parte de muitos dos fãs assegurados pelas abordagens antecessoras. Em Aliens, encontrávamo-nos na presença de uma das melhores fitas de acção de sempre, em que James Cameron, especialista reconhecido na matéria, intercalava sequências prolongadas de suspense (exploração da colónia abandonada e "caça ao bicho") com outras de batalha e tiroteio frenéticas. No clímax desse filme, Ripley combate corpo-a-corpo, e com ajuda de um exoesqueleto mecanizado, a rainha mãe alienígena, numa sequência electrizante que ficou na história do cinema. Em Alien³ não encontramos nada de remotamente semelhante. Há algumas sequências de ação vertiginosas e até inovadoras (o ponto de vista first person do monstro a perseguir as vítimas), é certo, mas nenhuma tem o recorte técnico e a tensão registadas no anterior. Também não há um clima de medo e terror face ao desconhecido como no primeiro, e não é certamente pelo suspense que o filme nos agarra. A dimensão onde labora o realizador é de outra natureza, mais centrada na psicologia da sua personagem central, na forma como esta ausculta e interpreta o contexto envolvente, e como se decide a encaixar moralmente o seu destino. Weaver, que já tinha registado uma excelente prestação em Aliens, volta a tocar em todas as teclas certas, agora numa interpretação mais introspectiva e contida, quase nada comparável com a do filme anterior. Não é uma narrativa de trepidantes frenesins ou façanhas físicas limite, mas o fascínio da predestinação trágica daquilo que oferece em troca é igualmente compensador.

Alien³ ainda hoje suscita violentas reacções de protesto por parte de muitos apreciadores da saga, não pela heresia de terem rapado o cabelo a Ripley, sugerindo motivos sanitários falsos para a poderem equiparar a Joana, mas por ter desperdiçado as potencialidades de desenvolvimento da relação entre Ripley, Dwayne Hicks (Michael Biehn) e Newt (Carrie Henn) - fazendo morrer estes dois últimos no início do filme, antes de terem sequer a oportunidade de aparecer no ecrã. Julgo contudo que a discussão interminável sobre "aquilo que o filme poderia ter sido se tivessem sobrevivido..." acaba por turvar a apreciação de aquilo que de facto a obra "consegue ser", porque consegue ser em alguns aspectos superior aos dois antecessores. E porque Ripley, depois de tamanho sacrifício, também não o merece.

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