30/11/13

"Fora de tempo"

De entre os temas que me propus abordar no Câmara Subjectiva, a Música é aquele em que me encontro menos confortável, o que menos domino - ou não domino de todo, será mais adequado dizer - aquele sobre o qual tenho menos conhecimentos técnicos, históricos ou contextuais, e em que me custa mais encontrar palavras para definir o sentimento artístico/intelectual que me inunda enquanto dele me alimento. Não sei justificar por que é que gosto da música que gosto, de onde surgiu esse gosto, nem por que razão nele encontro pontos de contacto e de afastamento tão amplos e tão inacreditáveis entre os intérpretes e bandas que aprecio. 

Tentando pensar racionalmente, e de uma forma geral, a melodia e a harmonia instrumental/vocal são talvez as características que valorizo mais num tema, e a letra e a temática aqueles a que ligo menos (mesmo que delas possa gostar à mesma). A conversa que se estabelece entre os instrumentos, os diálogos entre eles que se distinguem no meio dessa conversa, as vozes individuais de cada um deles (e as vozes dos intérpretes, naturalmente), o ritmo, a harmonia, a capacidade que tem de ordenar ao nosso corpo para que se mexa, sobrepondo-se às ordens conscientes do cérebro. Mas às vezes, ou muitas vezes, um refrão, a sonoridade de um instrumento em particular, a voz de um(a) artista, a sua fragilidade, ou potência ou amplitude. Porquê aqueles em concreto? Não sei.

Se por um lado as minhas "raízes musicais" estão ligadas ao início dos anos 90 e à explosão cultural originada em Seattle a que deram o nome de Grunge (foi nessa altura, já bastante tardiamente na minha vida, diria, que despertei de facto para música), é contudo nos anos 60 que encontro o meu templo espiritual - onde estão reunidos o maior número de intérpretes, bandas e temas de que gosto. A música que se produz actualmente - seja de que género/intérprete/banda - não me fascina, não me interessa, não me cativa, não me toca (passe a inversão de sentido). Como em tudo, naturalmente há excepções. A excepção que importa referir a este propósito tem a ver com a Música produzida para Cinema - por estranho que pareça (ou se calhar não tanto, olhando para o tipo de mensagens aqui publicadas no blogue), é por via das imagens que me chega o gosto por esse segmento específico dentro da Música.

Voltando aos sixties: são eles a razão desta mensagem - é neles que se vai centrar a esmagadora maioria das abordagens sobre Música que por aqui se publicarão - e nada mais justo e apropriado do que começar pela Banda, por Aquela que me enche mais as medidas, A que tem o maior número de temas de que gosto, A que tem o maior número de álbuns em que gosto de todos os temas sem excepção, A que consigo ouvir mais tempo seguido, Aquela a que torno com mais frequência para encontrar uma zona de conforto e paz interior. A Banda... Os Beatles. (por uma questão de "jeito fonético", excusar-me-ei de os tratar por The Beatles, perdoem-me os puristas da língua...) 


Os Beatles, em conjunto com os (The) Rolling Stones, protagonizaram a grande revolução cultural dos anos sessenta na qualidade de "cabeças de cartaz", transpondo as barreiras da música e as fronteiras entre países para influenciar os hábitos diários de milhões de fãs por todo o mundo (o Japão é um caso curioso neste panorama). Se no início dos anos sessenta o tom que caracterizava a banda (e os primeiros três ou quatro álbuns) se centrava quase exclusivamente em temas românticos pop/rock que incendiaram plateias de jovens histéricas (muito bons temas, há que o referir), com o passar dos anos, o natural apuramento das qualidades técnicas e o aprofundar das relações de amizade e hábitos de trabalho entre John Lennon, Paul McCartney, Ringo Starr e George Harrison (pela ordem na foto) levaram a um período de inovação e experimentalismo (iniciado no álbum Rubber Soul - 1965) que galgou e misturou géneros, revolucionou toda uma era e deixou um legado cultural que ainda hoje persiste. Os Beatles separaram-se em 1970, não tendo voltado a actuar mais em conjunto. A lista de recordes batidos/mantidos pela banda é extensa, e quase custa a acreditar nos números apresentados, tendo em contar a época em que sucederam, mas penso que seja muito mais pela qualidade da música e imortalidade de alguns temas que a banda será recordada no futuro.
Seria relativamente simples escolher referências de entre os temas mais conhecidos e óbvios da banda para "despejar" aqui (Twist and Shout, Love Me Do, Yesterday, Eleanor Rigby, Yellow Submarine, All You Need is Love, While My Guitar Gently Weeps, Hey Jude ou Let It Be vêm sem grande esforço à memória), mas não é de todo isso que pretendo deste espaço - é antes dar a conhecer outros menos divulgados, representativos dos vários estádios musicais por que passou, mesmo que no caso d'Os Beatles isso seja uma tarefa ingrata. Quatro temas, um por cada membro da banda:


I Saw Her Standing There, do álbum Please Please Me - 1963 

Think for Yourself, do álbum Rubber Soul - 1965

She's Leaving Home - do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band  - 1967

I Me Mine, do álbum Let It Be - 1970

28/11/13

O corpo de Alexandra

Para além das nuvens. Sobre a capacidade que certos autores têm em nos fazer acreditar na palavra enquanto artifício impulsionador do voo. Por um dos nossos melhores.


«A mulher deitada:
Na parede estava espalmada a gravura dum homem-pássaro, de vez em quando ouvia-se o cântico de uma criança muito longínquo. Esta criatura (o homem-pássaro) vinha dos álbuns de Max Ernst e tinha máscara de falcão, bico e olhos de falcão; suspendia uma madona nua pelos cabelos. Tudo muito nítido no desenho. Violentamente nítido, até.
De resto, na manhã de luz onde repousava a mulher deitada, cada traço, cada cor, tinha exactidão e espessura, os próprios lençóis amontoados ao fundo da cama eram relevos de sono num branco carnal. Também o espelho alto, espalmado no lado de dentro da porta, reflectia a exactidão, não a cegueira da luz, e isso porque, cobrindo a entrada a toda a altura do quarto, se apresentava como uma testemunha serena que tudo sabe e tudo viu.
O espelho e a cama. A cama que era rasa e imensa avançava pela manhã de sol entre pontas de cigarro e papéis a boiarem no chão, e a mulher que estava nela (à sombra do homem-pássaro) ia em sono sereno. Por cima e à volta esvoaçavam farrapos de vozes que vinham da rua: deviam ser, eram, as crianças dos vizinhos a brincar no relvado que separava os blocos de apartamentos. Eram, com certeza. Cantavam de roda com uma luz dourada de abelhas ao sol; num Outono assim e num jardim de crianças vê-se sempre uma velha sentada num banco, de boca aberta para o céu. Certo e fatal. Uma velha voltada para o sol e com uma dentadura postiça na palma da mão.
Bem, a cama. A gravura da madona desnuda, o espelho, os cigarros, tudo isso. Havia também a mão, a mão esquecida sobre um livro aberto em inglês, The Diary of Anais Nin, impressionava pela secura. Surpreendia que uns dedos assim gastos, fumados e ardidos de insónia, pertencessem a um corpo ainda jovem como aquele. E consciente, tinha todo o traçado de um corpo consciente. Experimentado. Dono do seu destino, ou parecendo. Um pescoço em linhas afirmativas, seios precisos e terminados em botão de cobre (estavam eriçadas essas pontas naquele momento: algum sonho?), coxas densas. Talvez longas demais, as coxas, e demasiado eloquentes, se assim se pode dizer. Ou talvez não, porque, atentando bem, essa massa de músculos aqui na confluências das pernas ou os tornozelos um pouco espessos só tornavam mais pessoal o conjunto. Com efeito toda aquela natureza que estava à vista era nitidamente pessoal e una. Apresentava-se como uma extensão de claridade onde crepitava o púbis, delta de Vénus, asa nocturna ou como se queira chamar à labareda negra que se imobiliza num corpo assim.
Ronco dum avião a declinar sobre a cidade, a caminho do aeroporto.
A mulher adormecida repetia-se numa grande foto a cores que havia, ou houve, algures naquele quarto, e onde ela aparecia a amparar uma criança loura a cavalo a cavalo da proa de um barco. Ambos em pose de mãe e filho numa praia de coqueiros, a embarcação com uma carraça esculpida na proa (as terríveis máscaras dos demónios navegadores que habitam o rio São Francisco, salvo erro) e, firmando mais o olhar, lá estava, lá estaria, certa manha de pele, uma nódoa do feitio duma mariposa, impressa no ombro do garoto. Beto, era ele.
«Maninha, como é que o dói-dói nasceu?»
«Não é dói-dói, é um sinal. Veio assim quando o Beto saiu da barriga da mãe.»
Pela infância fora o pequeno não parava de interrogar ao espelho a nódoa que lhe selava a natureza. Temia que fosse crescendo com a idade, e alastrasse, e escurecesse, cobrindo-lhe o corpo até o transformar num preto, como lhe dissera uma miúda na praia. Um preto, que coisa. E sendo louro, ainda pior. Oh, oh, o preto louro. Oh, oh, o preto louro.
«Maninha.»
«Que é?»
«Maninha, a Maninha não tem sinais?»
«Tão bonitos como esse, não.»
«São mais grandes?»
«São diferentes. São uma picadela de sol, não têm puto de graça. Vá, tapa o ombro e por favor deixa-te de coçar.»
Ano a ano o garoto ia tomando corpo no espelho pregado na porta do quarto, com olhos naquela marca invencível.
«Maninha.»
«Que é?»
«Os teus sinais.»
«A Maninha não tem sinais, quando acaba o Verão desaparecem sempre.»
«Mostra.»
Então a mulher que agora dormia endireitou-se diante do espelho, e de rosto apontado para longe abriu o roupão de par a par. Nem nos seios, nem no ventre, nem a todo o comprimento das coxas e dos braços tinha um único ponto escuro, uma sarda ou memória de sarda. Deixou-se ficar assim, obediente, exposta à curiosidade do pequeno. Mas num movimento lento, sempre com os olhos no espelho, levou a mão à virilha; e na virilha, mesmo na orla do púbis, fez surgir um pequeno sinal que era como que uma gota nocturna, densa e minúscula e talvez orgulhosa.
Beto aproximou o olhar, atraído e ao mesmo tempo receoso, mas Maninha pegou-lhe num dedo e conduziu-o até ao sinal para lhe dar a conhecer a macieza e o contorno dessa revelação, tornando-a bem palpável, sem mistério. Sempre de cabeça levantada para o espelho, deixou-se estudar e sentir pelo garoto. Imóvel. Pacientemente como um animal que espera.
Quantos beijos, quantas bocas não teriam perscrutado e segredado aquele sinal. E com que engenhos, com que imaginações. Quantas vezes Roberto Waldir, o mais amado, com os seus dentes irradiantes, assinou a pele da mulher deitada, como parece que ninguém mais a soube assinar. E no entanto ela bem o prevenira: «Tenho um corpo ingrato, não te fies.» Disse-lho, deu-lhe o aviso, quanto a isso não pode haver qualquer dúvida. Deu-o certamente também a outros amantes porque nestes jogos de cama as pessoas repetem-se quase sempre. Esta Maninha. Esta Alexandra de livro adormecido à margem da sua nudez. Todo o corpo dela era ingrato, e se calhar ainda bem; ou ainda mal, Alexandra já nem sabia. A verdade é que era um território, um lume de pele, onde havia de ser bom depor confidências; e que embora propício ao registo absorvia todas as marcas felizes logo que ficava solitário.»

in Alexandra Alpha - José Cardoso Pires - 1987

27/11/13

Heaven's Gate - As Portas do Céu - Michael Cimino - 1980




Resumindo uma longa e atribulada história, depois do êxito retumbante de The Deer Hunter - O Caçador (1978), e da sua aclamação mediática junto dos óscares, a United Artists decidiu dar carta branca ao realizador Michael Cimino para o projecto seguinte, incluindo a liberdade critativa e os meios financeiros que achasse necessários para o erguer segundo a sua visão. Heaven's Gate é o fruto dessa visão - uma obra desmesurada e megalómana, mas que vale todo os dólares que custou a produzir. Aquando da estreia, o filme resultou num fiasco monumental junto das bilheteiras e num escândalo financeiro que levou o estúdio à falência, arruinando a eventual futura carreira de Cimino e condicionando irrevogavelmente a forma como as grande produtoras financiariam o cinema daí em diante (basicamente, segundo o princípio: "não há mais pão para malucos"). A versão de Heaven's Gate apresentada para distribuição generalizada nas salas (retalhada - cerca de uma hora mais curta do que a original tal como pensada por Cimino, com 219 minutos), foi trucidada uniformemente pela crítica norte americana e ignorada pelo público em geral, chegando a ser apelidada de "o pior filme de sempre".


 O tempo decorrido desde então, o acolhimento entusiástico na Europa, e o lançamento da versão mais longa de acordo com o desejo do realizador (o directors' cut de 216 minutos), exibida novamente em 2012 no Festival de Veneza e lançada no catálogo da Criterion numa cópia imaculada, reabilitaram até certo ponto o filme, mas ainda terão de passar muitos anos - mais uma geração? - até que as cicatrizes do passado desapareçam por completo e lhe seja feita inteira justiça. Porque Heaven's Gate é um objecto de cinema singular, belíssimo na sua concepção e escopo visuais, filmado por um cineasta - também ele singular - que sabe dar o tempo necessário às sequências para que respirem, para que nos apaixonemos pelas personagens, paisagens e cenários na mesma proporção em que também ele próprio o declara através da câmara, de forma incondicional.


Trata-se um Western-anti-Western, prova de amor e de acusação em simultâneo, actualíssimo enquanto denúncia da ausência de valores morais e da hipocrisia reinante nas instituições "democráticas", que ousa demolir as fundações históricas da sociedade Norte Americana com tanto ou mais ímpeto com que The Deer Hunter o havia feito em relação ao envolvimento terrorista dos states no Vietname. A este respeito, dificilmente encontraremos no cinema outro caso tão extremista e determinado no apego ao realismo e na vontade-necessidade de revelar "a verdadeira verdade" (e talvez que esta amargura explícita e desconfortável em relação a valores que aprendemos desde cedo a respeitar seja uma das razões que explicam o seu fracasso comercial - uma, porque haverá outras). Nem Scorsese conseguiu ser tão cru ou cruel, vinte anos volvidos, no seu Gangsters of New York (2002).


Heaven's Gate é uma obra com um sentido contextual estético que borda o maníaco, com uma minúcia no detalhe e no pormenor que desafia a nossa credulidade (no melhor dos sentidos); uma boa parte do dinheiro colocado à disposição de Cimino terá sido gasto com este fim em mente: tudo parece real, tudo tem uma aparência de "usado", de "vivido", de "adequado" às personagens e às sociedades que estas habitam ("sociedades", plural, porque a abordagem é transversal - e vertical - no que respeita a classes e a comunidades). De facto, no que concerne a questões de reconstituição visual histórica (ainda que os factos tenham sido ficcionalizados), a sensação é a de "estarmos lá", naquele sítio, naquele momento. O efeito será tanto mais estranho quanto o nosso hábito de anos e anos a ver cenários recriados de forma teatral, que aceitamos como certos já sem pensarmos no assunto, mas que não revelam a essência dos hábitos diários - por outras palavras, foram dispostos para fornecer um contexto material, mas à conta de tanta preocupação simbólica acabam por não esconder uma dimensão extra-narrativa postiça, que soa a "falso" (um bom exemplo disto, e para lá de todos os méritos que o filme possa ter, é o que sucede em Dances With Wolves - 1990). É difícil não deixarmos cair o queixo uma quantas vezes ao longo da visualização de Heaven's Gate, não nos perdermos na imersividade realista dos cenários interiores e na sua total harmonia em relação à envolvente paisagística natural, com as gigantescas escarpas montanhosas a fecharem o último plano ao fundo no horizonte, tal com sucedia na pequena comunidade de Clairton, em The Deer Hunter. Não há Western mais conseguido ou visualmente estimulante do que este - nem as grandes obras de Ford, Hawks ou Mann, em toda a sua magnificência telúrica e força cenográfica, chegam perto de Heaven's Gate. Até pode ser que Cimino tenha tido a seu favor o legado de tais mestres, mas a verdade é que soube assimilar, mostrar que aprendeu a lição, e ainda acrescentar o seu ponto de costura. Neste domínio, o filme é um triunfo artístico absoluto, uma obra deslumbrante que se absorve como uma valsa, elegante, sóbria e moderna, que conserva no entanto um certo formalismo clássico que já vinha morrendo por essa altura e do qual pouco ou nada resta no cinema que se faz actualmente.



Mas não é só por aqui - até porque o contrabalanço temático e o tom desencantado com que este nos é servido são amargos e doloroso (muito... muito...). Nem a palavra Western, nem a narração histórica (ainda que ficcionalizada) daquilo que se sucedeu no Wyoming,  na Guerra de Johnson County, poderiam alguma vez chegar para resumir o furacão destrutivo que nos aguarda em Heaven's Gate. No seguimento da "carta aberta" de denúncia à falsidade democrática exposta em The Deer Hunter, filme com o qual Heaven's Gate partilha de inúmeras características, Cimino enterra mais fundo o dedo na ferida e mostra-nos sem piedade nem pudor a falta de limites e a podridão xenófoba que "vem de cima" - dos powers that be institucionais. Sob o falso e conveniente pretexto de eliminar um pequeno grupo de "ladrões de gado e anarquistas" que ameaça a soberania do estado em Wyoming, em 1890, uma influente associação de grandes proprietários, com ligações ao poder político, elabora uma lista com 125 nomes de emigrantes europeus a abater, gente que atravessou o Atlântico à procura de uma nova oportunidade e que tem no sustento da terra o único meio de subsistência. A aplicação da "justiça" propriamente dita ficará a cargo de um grupo de pistoleiros profissionais - mercenários contratados a peso de ouro para efectuarem a limpeza.
 

Para quem não havia entendido a mensagem passada em The Deer Hunter, (lembremo-nos de Jane Fonda...), Cimino explicita-a agora com todas as letras do alfabeto: a operação tem o aval directo do Presidente dos Estados Unidos da América(!), sobrepondo a jurisdição de qualquer agente da autoridade local e impedindo a própria cavalaria de intervir em defesa da população estrangeira. É a "lei" ao serviço do assassinato selectivo e em massa, não só desses 125 nomes, como das respectivas famílias e de mais quem se lhes oponha - a pulverização de uma fatia social incómoda de um ponto de vista monetário e político. E quem se lhes opõe é o marshal local, James Averill (Kris Kristoffersen), um herói fora do seu tempo, oriundo das classes altas, mas que conserva os princípios morais que lhe foram transmitidos durante a educação, decidindo tomar o partido da comunidade emigrante - de quem de resto é vizinho - e organizar um foco de resistência local. Averill está para Heaven's Gate como Michael (Robert De Niro) estava para The Deer Hunter, personagens de carácter forte e espírito determinado, mas de onde não estão ausentes ambiguidades, contradições e dilemas morais que resultam em acções "menos dignas", como a traição a um amigo (Christopher Walken) ou o abandono de uma causa social por conta do amor/rejeição de uma mulher (Isabelle Huppert), por exemplo.


É em Averill que se intersectam os dois eixos temáticos narrativos principais de Heaven's Gate e se constrói a conflituosa ponte entre uma realidade individual em declínio e o drama social de toda uma comunidade. Num dos eixos estará então a opressão dos poderosos sobre os desfavorecidos - com um massacre a avizinhar-se para breve -, e no outro o fecho anunciado de um ciclo na vida de um homem profundamente desiludido com as expectativas que não conseguiu concretizar desde a juventude. A estruturação narrativa do filme, mais uma vez à semelhança do que sucedeu em The Deer Hunter, é feita por compartimentos cronológicos que acondicionam e dão espessura às personagens. Há um "antes" (a festa de formatura de Averill em Harvard), um "durante" (a guerra de Johnson County) e um "após" (Averill a espreitar sobre o passado, a partir de uma terceira idade que o aprisiona). Sob esta perspectiva, Heaven's Gate afigura-se também como uma reflexão melancólica bastante amarga sobre o desencanto da vida, o envelhecimento, e sobre aquilo se vai esfumando à medida que certas decisões vão sendo tomadas - até que nada mais há a fazer para recuperar os sonhos que em determinada altura pareceram tão certos e promissores. Pelo meio, alguns raros momentos de felicidade...


Averill e Ella - ao som de David Mansfield


James Averill: «I'm getting old...»
Ella Watson: «Do you think everything stops because you're getting old?»
James Averill: «Maybe it does.»


26/11/13

Woody Allen Clips #1

Stardust Memories - Recordações (1980), surgido já depois dos sucessos de Annie Hall (1977) e Manhattan (1979), é uma das pérolas esquecidas na carreira de Woody Allen, uma homenagem delirante a Federico Fellini e ao seu (1963), mas que não se afasta um milímetro da órbita que Allen inventou para a sua personagem cinematográfica. 

Dito de outro modo, isto não é Allen a fazer de Fellini, é Allen a fazer de Allen a fazer de Fellini (o que faz toda a diferença), com o realizador-actor-tornado-personagem a tomar o papel que nesse outro filme coube a Marcello Mastroianni... que fazia de Fellini. Confuso? Talvez nem tanto, porque o propósito de Allen em Recordações é, segundo o próprio, somente fazer rir (não o levemos a sério...). É como se se visse subitamente transposto, a preto-e-branco e tudo, para o território de intervenção de Allen, mantendo a aura surrealista e caricatural de Fellini, e sem esquecer o interminável diálogo-debate interior sobre o sentido das coisas que caracteriza o cinema dos dois autores.







23/11/13

The Thin Red Line - A Barreira Invisível - Terrence Malick - 1998

 

I seen another world. Sometimes I think it was just my imagination. - Private Witt

A Barreira Invisível, a mais hipnótica viagem espiritual que o cinema nos deu a ver, não se confina às generalidades a que estamos habituados a assistir num "filme de guerra" segundo as convenções normais do género, pelo menos enquanto mostruário-compêndio de horrores bélicos. Não que essa vertente tenha sido colocada de parte - pelo contrário, as sequências de batalha, magistralmente encenadas a céu aberto, ocupam um espaço importante no filme, e são-lhe até essenciais - mas o que interessa a Malick joga-se noutros quadrantes: a perspectivação, ao nível do pensamento comum, das grandes dúvidas metafísicas da humanidade - como reagimos perante a noção iminente da morte? A que "crenças" nos rendemos nesse momento? O que é que de facto amamos na vida? De que nos recordamos com mais fulgor? Que linha invisível é essa que separa a vida da morte?

Partindo destas linhas orientadoras, e tendo como pano de fundo uma pequena ilha no meio pacífico onde se joga o rumo de uma guerra, o equilíbrio narrativo do filme - notável exercício lírico de meditação e introspecção - ergue-se num delicado debate ideológico organizado por camadas, num jogo de confrontos entre as vozes interiores de cada soldado e uma determinada consciência social, colectiva e una, tornada coesa à força das normas impostas pelo exército, mas à beira de se desfazer em cacos perante a exposição continuada à agonia e ao sofrimento. Na periferia deste debate tornado combate, encontra-se aquilo que é mais imediato aos sentidos: à espectacularidade imersiva do cenário natural daquela ilha (a uma natureza que "olha" com indiferença para os soldados que estão de passagem), à sua fauna e flora, contrapõe-se a crueza dos horrores da guerra, do medo, do sangue, das mutilações - da morte; ao passo que no centro, esse debate interior passa para o plano da fé e da crença, e para a forma como consequentemente se exterioriza em acções.

A dúvida impera e persiste. Como pode o espírito divino - enquanto centelha de vida - coabitar ao mesmo tempo, de forma tão intensa e perfeita, no melhor e no pior daquilo que a vida tem para oferecer?

O soldado Witt (Jim Caviezel), a personagem que materializa de forma mais evidente o sentido de harmonia pacificadora que vem "do alto" (e que impregna o filme do início ao fim), aguarda o devir com a serenidade de quem tem uma certeza. A vida é apenas uma etapa num plano mais abrangente, e a morte uma espécie de ritual de passagem que ele espera conseguir transpor de forma digna. Na sua memória está gravada uma epifania, a recordação do momento da morte da mãe, uma lembrança reveladora e desafiante, que ele imaginou ter ocorrido na presença de um anjo. Welsh (Sean Penn) é o seu "opositor retórico", um homem pragmatizado pelo aparelho educador-triturador do exército, o sargento que primeiramente tenta chamar Witt à razão ("There's not some other world out there where everything's gonna be okay. There's just this one, just this rock."), mas que mais tarde, face à incapacidade de lidar com o sofrimento que vê à sua volta e com a imprevisibilidade do destino, acaba a invejar-lhe o sentido de orientação espiritual (o plano da despedida funciona como uma amarga confirmação).

Há outra referência explícita à presença de Deus junto de uma personagem importante, numa situação diversa ao caso de Witt, mas complementar no estabelecimento de um propósito/paralelismo. A determinada altura, o Capitão Staros (Elias Koteas) pede força a Deus para tomar as decisões certas na batalha que se avizinha. Na escuridão da noite, junto dele, enquanto reza, a chama de uma vela acesa agita-se por momentos, como que trespassada por um sopro suave, num plano que é impossível de categorizar como aleatório ou meramente ilustrativo a nível artístico. No dia seguinte, durante a ofensiva, Staros desobedece a uma ordem directa de um superior hierárquico (Nick Nolte) e recusa enviar os homens que comanda para a morte certa. Ele sabe que a sua carreira militar termina ali, mas num momento de clarividência, e enquanto tudo à sua volta sucumbe à surdina das explosões de artilharia, escolhe a preservação da Vida - o caminho de Deus - em detrimento das maquinações orquestradas pelo egoísmo do Homem.

Mas não é a guerra nem as suas marcas que nos ficam a trabalhar nos sentidos depois de o filme ter terminado, é antes aquela luz celestial que de vez em quando atravessa a vegetação e nos banha com um qualquer estado de graça. É a beleza avassaladora e desarmante das imagens de Malick a deslizarem suavemente ao som da música de Zimmer. É a nossa presença passageira e talvez inconsequente enquanto representantes da vida - de um todo em que somos apenas uma pequena parcela - neste mundo. É uma força inspiradora sem paralelo, ainda que equilibrada de forma periclitante entres dois extremos opostos... separados por uma barreira invisível.


Oh, my soul, let me be in you now. Look out through my eyes, look out at the things you've made. All things shining. - Private Train

21/11/13

Flowers for Algernon - Daniel Keyes - 1966



Charlie Gordon é um deficiente mental a quem um dia é dada a hipótese de se tornar inteligente, através de uma operação experimental ao cérebro. A operação foi testada anteriormente em ratos e os resultados são promissores; a equipa de cientistas responsável pela descoberta utiliza Algernon, um desses ratos, numa série de exercícios cronometrados de fuga de labirintos, lado a lado com Charlie, para perceberem até que ponto a experiência pode resultar num humano. De início Charlie é batido sistematicamente por Algernon, mas à medida que o tempo avança, também o seu QI vai aumentando. Charlie começa então a olhar para o mundo que sempre conheceu, e em que sempre se sentiu seguro, de uma perspectiva que tem tanto de fascinante como de assustadora. 
 
Tudo foi tratado de forma excepcional neste livro: desde a linguagem utilizada pelo personagem principal, Charlie, que narra a história a partir de relatórios escritos na primeira pessoa, em formato de diário, passando pelo desenvolvimento narrativo (a sucessão de factos cronológicos e a forma como são encadeados e desenvolvidos estão sempre um passo à frente das previsões do leitor), e terminando na absoluta segurança com que é gerida a ligação entre racionalidade e emotividade, nomeadamente quando a evolução natural de um destes vectores é adulterada e acelerada no tempo milhares de vezes e a outra não consegue acompanhar - porque necessita de experiência de vida, que não tem, para "aprender".

O livro começa com a seguinte entrada no diário:
«progris riport 1 martch 3
Dr Strauss says I shoud rite down what I think and remembir and evrey thing that happins to me from now on. I dont no why but he says its importint so they will see if they can use me. I hope they use me becaus Miss Kinnian says mabye they can make me smart. I want to be smart. My name is Charlie Gordon I werk in Dormers bakery where Mr Donner gives me 11 dollers a week and bred or cake if I want. I am 32 yeres old and next munth is my brithday. I tolld dr Strauss and perfesser Nemur I cant rite good but he says it dont matter he says I shud rite just like I talk and like I rite compushishens in Miss Kin-nians class at the beekmin collidge center for retarted adults where I go to lern 3 times a week on my time off. Dr. Strauss says to rite a lot evrything I think and evrything that happins to me but I cant think anymor because I have nothing to rite so I will close for today... yrs truly Charlie Gordon.» 

Um pouco mais para a frente, já depois da operação, temos isto:

«Apr 15
 Miss Kinnian says Im lerning fast. She read some of the Progress Reports and she looked at me kind of funny. She says Im a fine person and Ill show them all. I asked her why. She said never mind but I shouldnt feel bad if I find out everybody isnt nice like I think. She said for a person who god gave so little to you done more then a lot of people with brains they never even used. I said all my friends are smart people but there good. They like me and they never did anything that wasnt nice. Then she got something in her eye and she had to run out to the ladys room.
Apr 16
Today, I lerned, the comma, this is a comma (,) a period, with a tail, Miss Kinnian, says its importent, because, it makes writing, better, she said, somebody, coud lose, a lot of money, if a comma, isnt, in the, right place, I dont have, any money, and I dont see, how a comma, keeps you, from losing it.»

Não há almoços grátis, e é isso que Charlie vai descobrir quando a sua mentalidade emocional, própria de uma criança de 10 anos, é confrontada subitamente, numa questão de semanas, com os problemas do mundo dos adultos. A realidade passa a ser um pau de dois gumes - se por um lado a sua capacidade de raciocínio e aprendizagem é elevada bem acima dos padrões normais, a sua vida emocional rapidamente chega a um beco sem saída. Todas as pessoas que conhece e ama começam a olhá-lo com desconfiança, ao mesmo tempo que as recordações do passado (coisa que Charlie nunca teve até aí, por efeitos da sua incapacidade) começam a atormentá-lo e a alterar a sua percepção sobre aquilo que sempre tomou por adquirido. Privado do natural tempo de aprendizagem que acompanha o crescimento humano, e sem um tutor apropriado para lhe dar a segurança necessária, Charlie decide dedicar-se a estudar o próprio projecto científico que lhe aumentou a inteligência.

Mais do que uma simples narrativa de entretenimento, a obra é uma fábula moderna de Ficção Científica sobre a própria condição humana, com várias camadas de sub-texto capazes de desencadear a reflexão no leitor. É um prazer (por vezes difícil de digerir) acompanhar tanto a prosa como o facto narrativo. É um prazer ler sobre uma matéria delicada e chegar ao fim a saber que Daniel Keyes tratou do assunto sem deslizes, sem optar por caminhos fáceis, e sobretudo sem cair na pieguice - mesmo quando, perante a impotência total de Charlie Gordon, somos assaltados pelas mais básica emoções humanas.

O que é melhor, ser ignorante e feliz ou inteligente e miserável?
Haverá um equilíbrio certo entre a bondade e a inteligência? 
De que é que depende a felicidade humana?
E até que ponto podemos intervir para a determinar?
Valerá a pena tentar, sabendo que tudo tem um fim?


Estas são alguma das questões com que no final o leitor terá forçosamente de se debater. Com esperança, o caminho para encontrar as respostas torná-lo-á numa pessoa diferente - é tudo o que se pode esperar de um bom livro, que no final não sejamos a mesma pessoa do que antes de o iniciarmos.  

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Este artigo diz respeito ao romance publicado em 1966, que não tem edição portuguesa, e não ao conto original, publicado em 1959. Esse conto foi publicado por cá, numa colectânea da Colecção Argonauta, nº 100. A história, pelo que dizem, é a mesma, com mais ou com menos desenvolvimento narrativo à mistura, conforme a versão, sendo que o conto ganhou o prémio Hugo, e o romance ganhou o prémio Nebula - dois dos mais prestigiados galardões internacionais que premeiam obras de Ficção Fantástica.

20/11/13

Religião iMoral


Nas deambulações inconsequentes pela Net por vezes vamos dar a sítios consequentes. Esta delirante adaptação d' A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, foi elaborada por Casaro Renato e (re)baptizada de Invitation. Será que se trata de um convite para comer gelado?

No site há mais tentações...


18/11/13

The Quiet Man - O Homem Tranquilo - John Ford - 1952


John Ford é um nome que dificilmente passará despercebido a amantes da 7ª Arte, mesmo àqueles que ainda não tenham visto qualquer dos seus filmes (enfatizo o "ainda", em jeito de sugestão, porque muitos títulos são amostras notáveis de uma certa forma de fazer Cinema que já não encontra paralelo nos dias de hoje, e seria uma pena deixá-los passar). Das suas mãos saíram alguns do mais célebres e celebrados Westerns de sempre, produzidos em Hollywood durante a idade de ouro do género, numa altura em que este era considerado um sinónimo cinematográfico de "Estados Unidos da América", pela estreita relação telúrica e mitológica que pôde ser estabelecida com o processo de conquista e fundação dos territórios interiores do oeste. O homem que um dia disse «My name is John Ford. I make westerns.» fez dos espaços inóspitos e das elevações rochosas de Monument Valley o seu lar espiritual e aí contextualizou toda uma família fordiana de personagens pitorescas, encabeçada dentro e fora do ecrã por outro nome indissociável do género: John Wayne - o actor que melhor corporizou o herói americano por si idealizado.

Ford deixou um legado de mais de uma centena(!) de filmes e influenciou alguns dos grandes cineastas contemporâneos, exemplos de Martin Scorsese, Clint Eastwood ou Steven Spielberg. Títulos como Stagecoach - A Cavalgada Heróica (1939), My Darling Clementine - A Paixão dos Fortes (1946), The Searchers - A Desaparecida (1956) e The Man Who Shot Liberty Valance - O Homem que Matou Liberty Valance (1962) encheram salas, entusiasmaram plateias e estabeleceram patamares referenciais de qualidade numa rara união de vozes entre crítica e público - e apesar de tudo (deste "tudo" que tanto representa), seria tristemente redutor remeter John Ford ao lugar de criador de filmes do oeste. Tão redutor quanto dizer que os Westerns são fitas de "índios e cowboys" que servem para entreter às matinés (algo que, não deixando de ser verdade, é apenas uma ínfima parcela da verdade). 

The Quiet Man - O Homem Tranquilo, porventura um dos seus filmes mais representativos, se é que podemos para este efeito destacar alguns no conjunto da sua obra, não é de todo um Western (pelo menos segundo a noção corrente que temos de um Western) mas o facto é que conserva um conjunto de características, qualidades e valores, que Ford vinha expondo, em jeito de continuidade, ao longo de obras anteriores - em Westerns, mais concretamente -, sendo que a mera transposição do cenário geográfico para fora do continente americano, bem como a substituição de armas de fogo por punhos cerrados, não alteram em nada o campo de trabalho de Ford. A sua arte transcende, neste sentido, qualquer ideia de catalogação por géneros, e é interessante apanhar pequenos gags que brincam com a situação (o momento em que Wayne atira para longe um chapéu de coco que o torna ridículo, como que a dizer "o chapéu que costumo usar é outro!"), ou que dão sequência e complementaridade a situações de outros filmes (ao feroz "Never apologize, mister, it's a sign of weakness." de She Wore a Yellow Ribbon - Os Dominadores, utilizado por Wayne num contexto hierárquico militar, sucede agora um humilde "Sorry", sussurrado ao abrigo da intimidade conjugal - algo que não pode, porque não pode, ser uma simples coincidência).



Situado no interior rural irlandês dos anos 20, o filme conta a história de um homem atormentado por um dilema moral no qual não pode permanecer indefinidamente e de onde não pode sair sem sacrificar uma parte da sua dignidade - um território sentimental por excelência em que Ford se evidenciou. Ninguém soube estabelecer melhor do que Ford um ponto de equilíbrio - e uma ponte - entre o interior e o exterior emocionais, sobretudo no que respeita à contextualização dos papéis/valores sociais das personagens perante o espaço geográfico - entre o dentro e o fora do lar - entre aquilo que é pensado e aquilo que é representado - entre sensibilidade e virilidade/coragem - entre homens que se definem perante a família (e muito em concreto perante a mulher que amam) e que se afirmam depois perante outros homens. Ninguém utilizou melhor uma câmara para expor sentimentos e mostrar atitudes através daquilo que em sentido estrito pode ser chamado de mise-em-scène: a distribuição espacial e movimentação de personagens no cenário, o jogo de influências e complementaridades que estas estabelecem entre si e com o próprio o cenário, e mais o uso da luz e da cor para definir as tonalidades emocionais. Se A Desaparecida é, a partir logo da primeira sequência (magnífica), a quintissência do saber de Ford nesta matéria, O Homem Tranquilo não deixa de ser outro exemplo paradigmático, com a casa de família que Sean Thornton (John Wayne) vai de novo ocupar a tornar-se o epicentro nevrálgico da encenação.



Tenho a clara noção de que quem não viu o filme, e tentar fazer uma ideia daquilo que nele pode encontrar a partir deste texto, vai permanecer completamente equivocado. Apesar de uma componente dramática trágica algo acentuada, Ford equilibra o filme com uma dose ainda maior de humor (a fita está pejada de gags), sendo que, pelo meio, e de forma algo inusitada, consegue encaixar uma paixão em que a sexualidade latente e o desejo carnal são os factores dominantes. O humor físico e a virilidade da carne são de resto características que atravessam transversalmente a sua obra, mas não creio que tenham sido conjugados de forma tão subversiva noutros lados. É refrescante ver um filme dos anos 50 que, sem nada mostrar, e com uma segurança a toda a prova, dá lições de cinema ao suposto "realismo natural" que é a norma hoje em dia. Há duas ou três sequências que poderiam figurar sem que lhes fosse prestado especial favor nos tops de cenas mais eróticas que de vez em quando surgem na Internet. Talvez estejam de facto fora do seu tempo por tudo aquilo que deixam oculto, mas demonstram o carácter e a elegância de um grande realizador. O seu nome é...

16/11/13

Comboio que passa

À partida este seria um registo que eu não consideraria publicar na Internet, essencialmente por não reunir um conjunto de requisitos técnicos que me satisfizessem o suficiente (e por ser uma abordagem relativamente banal dentro do género). O tipo de efeito pretendido, um motion-blur efectivo da composição a passar, exigiria em primeiro lugar um setup diferente, com utilização de um tripé e de um disparador, e uma deslocação a outra hora, mais tardia, com um pouco menos menos luz natural, à estação. Sucede que não fui ali de propósito nesse dia para tirar a foto, apenas carregava a máquina comigo e decidi arriscar um disparo. O resultado, não sendo completamente de se deitar fora, serve agora um propósito diferente: apontar as falhas mais evidentes e sugerir um cenário mais propício para captar uma "chapa" deste género.



Para captar deliberadamente um elemento do cenário "em movimento", mantendo os restantes "fixos", é necessário em primeiro lugar que a máquina fotográfica permita configurar os Modos Manuais - que não seja o equipamento a decidir automaticamente os valores para a Abertura do diafragma, Tempo de Exposição e Velocidade ISO. Qualquer DSLR actualmente no mercado permite estes modos, mas nem todos os modelos compactos, especialmente os de entrada de gama, estão equipados com esta possibilidade.

A ideia técnica principal que está subjacente a este tipo de registo é deixar o diafragma aberto o tempo suficiente para que determinado elemento no cenário se desloque durante esse período, fazendo com que se torne visível o seu efeito de arrasto. Isto significa, por outro lado, que a máquina tem de estar fixa, imóvel, durante esse período de tempo (ou então o resultado não se enquadrará bem dentro desta ideia). 

E para garantir que a máquina permaneça fixa durante esta (pequena) Longa-Exposição, nada melhor do que um tripé e mais um cabo disparador - elementos que permitem minimizar o efeito de "foto tremida". Essa é a primeira falha a apontar à foto mostrada. Como foi tirada com a máquina na mão, ficou ligeiramente tremida (porque o corpo humano não consegue permanecer completamente imóvel durante o tempo necessário, basicamente), mesmo que não se note muito. Há outros conceitos e técnicas a ter em atenção para garantir que uma foto não fique tremida, mas é coisa para abordar eventualmente noutra mensagem. 

Por outro lado, "tremida" não é a mesma coisa que "desfocada", embora sejam termos que por vezes se confundam. Esta foto está focada em toda a sua extensão - a Profundidade de Campo (vulgo DOF) estende-se até ao infinito. O "desfocado" tem antes a ver com aquilo que ao olho humano se parece com "embaciado", e é um factor que não é influenciado pela fixação ou imobilidade de máquina no momento do disparo. É um outro assunto também para debater mais tarde.

A segunda falha a apontar à imagem é a sobre-exposição. Tanto o céu como o edifício ao fundo ficaram claros de mais, "queimados", sem os detalhes visíveis, sem informação registada na fotografia, algo que é bastante frequente suceder quando há uma amplitude grande na claridade entre as várias partes do cenário que entram no enquadramento. Na foto em questão, há uma diferença acentuada entre a luz que provém do exterior da estação, e a luz no seu interior, e para que uma das parte possa ficar "bem exposta", a outra tem necessariamente de sofrer as consequências. Se se pretendesse que o céu ficasse bem exposto, o interior da estação ficaria na penumbra, e provavelmente não se notaria o efeito arrasto do comboio - ver-se ia antes a composição toda nítida, como que imóvel. A solução para resolver este problema é fotografar a uma hora do dia em que a diferença de claridade entre o "fora e o dentro da estação" seja menor. Menor não significa contudo que necessite de ser noite. De noite seria demasiado tarde para conseguir o resultado pretendido, pois já não haveria luz suficiente para registar uma Longa Exposição que ao mesmo tempo fosse curta - 1/4 de segundo, neste caso - sendo que o arrasto do comboio apareceria então muito mais pronunciado, como um extenso borrão de linhas coloridas.

Por último, considero importante referir que o elemento principal numa fotografia, qualquer que ele seja, sai sempre beneficiado quando o fundo e os elementos circundantes também são bem escolhidos - o que não é manifestamente o que sucede nesta foto, com os carros estacionados e alguns edifícios a "poluirem" o que resta da fotografia. Não chega captar em boas condições o motivo principal, ou aquilo que aparece em primeiro plano. É fundamental escolher também um bom background - estando este focado ou não. Tentar disparos de várias perspectivas dentro de uma mesma localização é uma boa ideia. Por vezes baixar a máquina até ao nível do solo e apontar para cima soluciona uma dor de cabeça. Escolher outros locais, ainda que distantes, quando o primeiro não permite uma boa harmonia entre planos, é outra boa ideia. 

Setup para a foto apresentada:
Canon 40D + Canon 10-22mm - (sem tripé)
Distância Focal: 10mm
Abertura: f/16
Tempo de Exposição: 1/4s
Velocidade ISO: 100

15/11/13

Os verdadeiros géneros literários



«Foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com o título que procuravas. Atrás desta pista visual, lá foste abrindo caminho pela loja dentro através da barreira cerrada dos Livros Que Não Leste, que de cenho franzido te olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te. Mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio deles se estendem por hectares e hectares os Livros Que Podes Passar Sem Ler, os Livros Feitos Para Outros Usos Além Da Leitura, os Livros Já Lidos Sem Ser Preciso Sequer Abri-los Por Pertencerem À Categoria Do Já Lido Ainda Antes De Ser Escrito. E assim transpões a primeira muralha dos baluartes e cai-te em cima a infantaria dos Livros Que Se Tivesses Mais Vidas Para  Viver Certamente Lerias Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Tens Para Viver São Os Que Tens Contados. Com um movimento rápido passas por cima deles e vais parar ao meio das falanges dos Livros Que Tens Intenção De Ler Mas Antes Deverias Ler Outros, dos Livros Demasiados Caros Que Podes Esperar Comprar Quando Forem Vendidos Em Saldo, Dos Livros Idem Idem Aspas Aspas Quando Forem Reeditados Em Formato De Bolso, dos Livros Que Podes Pedir A Alguém Que Te Empreste e dos Livros Que Todos Leram E Portanto É Quase Como Se Também Os Tivesses Lido. Escapando a estes assaltos, avanças para diante das torres do reduto, onde te opõem resistência

os Livros Que Há Muito Programaste Ler,
os Livros Que Há Anos Procuravas Sem Os Encontrares,
os Livros Que Tratam De Alguma Coisa De Que Ocupas Neste Momento,
os Livros Que Queres Ter Para Estarem À Mão Em Qualquer Circunstância,
os Livros Que Poderias Pôr De Lado Para Leres Se Calhar Este Verão,
os Livros Que Te Faltam Para Pôres Ao Lado De Outros Livros Na Tua Estante,
os Livros Que Te Inspiram Uma Curiosidade Repentina, Frenética E Não Claramente Justificada.

E lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio seja atacado pelas emboscadas dos Livros Lidos Há Tanto Tempo Que Já Seria Altura De Voltar A Lê-los e dos Livros Que Dizes Sempre Que Leste E Seria Altura De Te Decidires A Lê-los Mesmo.

Libertas-te com uns ziguezagues rápidos e penetras na cidadela das Novidades Cujo Autor Ou Assunto Te Atrai. Mesmo dentro desta fortaleza podes abrir brechas nas fileiras dos defensores dividindo-os em Novidades De Autores Ou Assuntos Não Novos (só para ti ou para toda a gente) e Novidades De Autores Ou Assuntos Completamente Desconhecidos (pelo menos para ti) e definir a atracção que eles exercem sobre ti com base nos teus desejos e necessidade de novo e de não novo (do novo que procuras no não novo e do não novo que procuras no novo).

Tudo isto para dizer que, percorridos rapidamente com o olhar os títulos dos volumes expostos na livraria, dirigiste os teus passos para uma pilha de Se numa noite de inverno um viajante fresquinhos do prelo, pegaste num exemplar e levaste-o à caixa para se regularizar o teu direito de propriedade sobre ele.»


in Se Numa Noite de Inverno um Viajante - Italo Calvino - 1979

14/11/13

Os Cus de Judas - António Lobo Antunes - 1979



- Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.
Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segredados.

Um bombardeamento ideológico intenso, quase como uma lavagem ao cérebro. Pega-se no livro (neste, no anterior...), algumas páginas volvidas e estamos mental e emocionalmente esgotados, enjoados e enojados com realismo cru da abordagem. O bombardeamento é implacável, constante, não deixa, não há espaços para descansar - pousar o livro não chega. Serve-se de palavras duras, agressivas, de frases excessivamente longas, sórdidas, carregadas de adjectivos e referências culturais dispersas, construídas de forma a nos empurrarem a atenção para o fundo de um labiríntico poço de funcionalismos metafóricos. Bem-vindos ao início do inferno da escrita de Lobo Antunes. Se ainda por lá não passaram, façam o favor.

Conhece Santa Margarida? Digo isto porque, às vezes, na messe dos oficiais decorada com o mau gosto impessoal da sala de espera de um dentista de Moscavide (flores de plástico, oleografias imprecisas cujos arabescos monótonos se confundem com o papel de parede, cadeiras hirtas semelhantes a quadrúpedes desirmanados pastando num acaso sem simetria as franjas gastas dos tapetes), a majores em reboliço abandonavam os copos de uísque, de cubos de gelo substituídos por dados de póquer, para, erectos como soldados de chumbo barrigudos, saudarem a entrada de uma senhora que qualquer coronel subitamente urbano comboiava, deixando atrás de si, perceptível na tremura dos galões, um rasto cochichado de cio de caserna, que se cristalizaria em esquemas explicativos no mármore venoso dos urinóis, destinado à alfabetização dos faxinas.

Um homem, o narrador, alguém que se confunde com o próprio autor do livro a ponto de acreditarmos que são a mesma pessoa, fala para uma mulher enquanto a tenta seduzir. O tema do monólogo é a guerra colonial e a sua participação como médico de campanha em Angola, 1971; as recordações, os efeitos devastadores que permanecem para a posteridade, para sempre, na memória de quem esteve no Ultramar, atirados para o livro numa dislexia anacrónica que não separa o passado do presente, como que a dizer: somos ainda aquilo que um dia fomos obrigados a ser. Os capítulos são as letras do alfabeto, e o fio condutor leva-nos por todos os recantos da recordação: eis aqui a vergonha na sua totalidade, contada em todas as letras, para que não haja dúvidas, para que nada fique esquecido. Para Lobo Antunes a experiência da guerra significa uma espécie renascimento: os homens que regressaram vivos voltaram a nascer pelo útero de uma puta chamada Pátria.

Porque camandro não se fala nisto? Começo a pensar que o milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não existiram nunca e lhe estou contanto uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar, uma história inventada com que a comovo a fim de conseguir mais depressa (um terço de paleio, um terço de álcool, um terço de ternura, sabe como é?) que você veja nascer comigo a manhã na claridade azul pálida que fura as persianas e sobe dos lençóis, revela a curva adormecida de uma nádega, um perfil de bruços no colchão, os nossos corpos confundidos num torpor sem mistério.

O personagem aparenta ser o mesmo de Memória de Elefante, a época abordada também, a perspectiva é que mudou de objecto focado: a família, a esposa e as filhas que eram o centro do mundo no primeiro livro, vêem-se substituída pelas explosões de minas e morteiros, pelo sangue escuro e vísceras dos soldados desafortunados, pelos cheiros da terra, do vómito, do esperma e da fruta de África, pela carne ferida, decepada e amputada, pelo sexo exposto ao abuso da violação, pelas prostitutas de cabarés rascas das cidades decrépitas de Angola, pela Pide e pelo Estado Novo, pelos crimes de guerra e pelas vítimas do medo, por uma vivência de absurdo completo em que nada parece fazer sentido e de onde não há como escapar - só pela morte ou loucura.

Não sucede o mesmo consigo? Nunca teve vontade de se vomitar a si própria?
(...)
Não, a sério, a felicidade, esse estado difuso resultante da impossível convergência de paralelas de uma digestão sem azia com o egoísmo satisfeito e sem remorsos, continua a parecer-me, a mim, que pertenço à dolorosa classe dos inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre, qualquer coisa de tão abstracto e estranho como a inocência, a justiça, a honra, conceitos grandiloquentes, profundos, e afinal vazios que a família, a escola, a catequese e o Estado me haviam solenemente impingido para melhor me domarem, para extinguirem, se assim me posso exprimir, no ovo, os meus desejos e protestos de revolta.
(…)
Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pénis sem força, vi homens de vinte anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques, e disse ao furriel enfermeiro, que desinfectava o joelho com tintura, É impossível que um dia destes não tenhamos para aqui uma merdósia qualquer, porque, sabe como é, quando homens de vintes anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo, algo de inesperado, e estranho, e trágico acontece sempre, até que me vieram informar do rádio Um tipo deu um tiro em Mangando, e eu corri para o carro onde a escolta me aguardava a aprontar-se ainda, e seguimos aos saltos para o norte pela picada que a chuva destruíra.

Aos poucos e poucos, como se imagens de objectos de que nos aproximamos no meio de um nevoeiro espesso e pesado se tratassem, começamos a vislumbrar detalhes daquilo que não muito mais tarde, em futuros romances, viria a ser uma das marcas-referência no estilo de António Lobo Antunes: parágrafos intermináveis onde não há um ponto final senão ao fim de algumas páginas, e uma sucessão algo caótica de frases e palavras que se lêem como se de pensamentos e memórias nossos se tratassem. Por enquanto, e porque esta é apenas uma segunda obra, e na primeira ainda não havia destas coisas, tal abordagem estilística extremada é empregue muito ao de leve, dir-se-ia que experimentalmente, timidamente, as palavras ainda aparecem organizadas segundo uma sintaxe perceptível, e encontramos apenas alguns destes trechos escondidos no meio de tudo o resto (leia-se, o resto do romance), sendo que neste caso tudo o resto, mesmo assim, já se nos apresenta como estando nos limites das regras gramaticais da escrita de português, e que funcionam aqui quase como uma mordaça que não aguenta por muito mais tempo até ceder, sob pressão, ao rugido do autor.

Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida de náufrago esquecendo-se da segurança do código, o capitão a subir à pressa para a Mercedes com meia dúzia de voluntários e a sair do arame a derrapar na areia ao encontro da emboscada, escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda, o morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto, era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada, Desta vez não há milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os, Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quero que o acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram tão grandes como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho caralho caralho com pronúncia do Norte, viemos de todos os pontos do nosso país amordaçado para morrer em Ninda, do nosso triste país de terra e mar para morrer em Ninda, Caralho caralho caralho repetia eu com o enfermeiro com o meu sotaque educado de Lisboa, o capitão apeou-se na Mercedes num cansaço infinito, segurava a arma à laia de uma cana de pesca inútil, o povo da sanzala espreitava receoso lá de baixo, escute-me como eu escutava o rápido latir aflito do meu sangue nas têmporas, o meu sangue intacto nas têmporas, pelos buracos da varanda via o capitão a passear de um lado para o outro apertando o viático de um copo de uísque contra o peito, falando sozinho, cada um conversava sozinho porque ninguém conseguia conversar com ninguém, o meu sangue no copo do capitão, tomai e bebei ó União Nacional, o corpo do morto crescia no quarto até rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcançar a mata em busca do eco do tiro que o tocou, o helicóptero transportou-o para Gago Coutinho como quem varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete, morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de África, baixas insignificantes e adeus até ao meu regresso, o furriel arrumou os instrumentos cirúrgicos na caixa cromada, os canivetes, as pinças, os porta-agulhas, as sondas, sentou-se ao meu lado nos degraus do posto de socorro, espécie de vivenda pequenina para férias dos reformados melancólicos, mordomos idosos, governantas virgens, os eucaliptos de Ninda não cessavam de aumentar, estamos os dois aqui sentados como eu e ele nesses tempo, Abril de 71, a dez mil quilómetros da minha cidade, da minha mulher grávida, dos meus irmãos de olhos azuis cujas cartas afectuosas se me enrolavam nas tripas em espirais de ternura, Foda-se, disse o furriel que limpava as botas com os dedos, Pois é, disse eu, e acho que até agora nunca tive um diálogo tão comprido com quem quer que fosse.

Adore-se ou deteste-se, e porque, tal como a guerra, é um livro feito de excessos e absurdos, quem o lê não o esquece tão depressa. Revelava-se e afirmava-se um Autor maior nesse ano de 1979.