14/11/14

Interstellar - Christopher Nolan - 2014


Nota prévia: o seguinte conjunto de apontamentos contém revelações explícitas sobre partes fundamentais da trama narrativa do filme Interstellar.


A abordagem de Christopher Nolan a este Interstellar faz-me de certa forma lembrar a ambição desmedida de Michael Cimino quando idealizou Heaven's Gate, não em termos narrativos ou temáticos (neste ponto são opostos: um é optimista, o outro é fatalista; um celebra o espírito indomável do homem face à adversidade/perspectiva de extinção, e a esperança na continuidade da espécie pelo testemunho emocional geracional - em que o envelhecimento é entendido como um estado altruísta de ensinamento e preparação da nossa descendência; enquanto que o outro filma o desancanto do envelhecimento, o descrédito nas instituições e a irremediável falência social comunitária), mas na vontade dos seus criadores em construírem um monumento cinéfilo perfeito, minucioso, através da inclusão e conjugação de uma enorme quantidade de elementos, vertentes e pontos de vista sobre da vida do homem em sociedade. 

Creio que num plano mais generalista, mais lato, tirando para fora os respectivos contextos históricos, os dois filmes tratam essencialmente de grandezas desta natureza, com o bem e o mal, o particular e o geral, a crença e o conhecimento, a emoção e a razão, a memória passada e o conhecimento presente, colocados em planos de equilíbrio precário, intermitentes, e expostos ao longo do arco completo de uma vida humana.

A determinada altura da história, parece-me também que Nolan presta uma homenagem velada a Greed, um opus magnum "maldito" da era silenciosa, realizado em 1924 por Erich Von Stroheim, e que foi prontamente desmembrado pelos produtores de forma a reduzir o seu espaço de duração prevista inicial, de 10 para 4 horas(!). Greed, esse, que também serviu de base comparativa quando Heaven's Gate, na sua versão castrada, foi assassinado nas bilheteiras por um coro de críticas pouco interessado na promoção do benefício da dúvida. Este momento de homenagem surge quando McConaughey e Matt Damon (um muito greedy e insano Damon) se envolvem num combate corpo-a-corpo na paisagem inóspita de um dos possíveis planetas destino para o novo berço da humanidade (com o gelo a substituir a areia quente do deserto). Um grito de protesto por parte de Nolan contra as limitações do meio comercial? Ou um simples artifício de derivação (necessidade?) narrativa?

Em Interstellar a coisa não resulta tão bem quando é necessário fechar o escopo sobre determinado assunto, simplesmente porque a dispersão é tanta que não há tempo para dedicar a todas as particularidades com a atenção que seria necessária, e em 3 horas de filme há que fazer escolhas. Estas escolhas implicam que determinados momentos não possam ser filmados, e que determinadas personagens não possam passar de elementos alegóricos - a mais das vezes verdadeiros na sua essência representativa, mas estereotipados, pouco complexos, e com reduzida margem/tempo para gerar empatia, como são os exemplos de Michael Caine, John Lithgow e Jessica Chastain, esta última a cair de paraquedas dentro de uma personagem moldada à força, a partir da imagem emocionalmente traída de uma criança (Wes Bentley e Casey Affleck não passam de meros figurantes). A alternativa é aquilo que foi tentado (e plenamente alcançado) nos 90 minutos cronometrados de Gravity, que é fechar logo esse escopo a partir do início, focando apenas uma personagem, e fazer do caso uma metáfora para o sofrimento recompensador da humanidade.

Cabe ao renascido Matthew McConaughey encher o ecrã com o seu carisma, não de forma tão determinante como noutros exemplos recentes (animalesco e dominador em Killer Joe, notavelmente contido em Mud, oscarizado e esquelético em Dallas Buyers Club, e transcendente na série True Detective), mas como o apoio necessário para que a câmara ofereça ao espectador um modelo de proximidade e confiança com o qual se possa identificar. Um modelo de determinação, coragem e alguma rebeldia, sem descorar o lado sensível essencial à condição de pai. McConaughey, um actor que se encontra a viver o momento mais alto da sua carreira, dá a sensação de poder carregar facilmente com o filme às costas, mas nem Interstellar necessita de tal esforço, nem a esquematização da personagem no guião permite aproveitar ao máximo o seu potencial (não por via da exuberância, mas por via da subtileza).


"Look Matthew, like I've told you a million times before - I won't sell you this cup for less than $25..."


A escolha resulta numa aposta ganha, e no elenco todo apenas a pequena Mackenzie Foy se revela à altura de um confronto directo com o actor em frente das câmaras - o tempero certo para cozinhar o estado de melancolia alimentada pela culpa que atinge McConaughey ao longo da viagem. Por seu turno, calhou a Anne Hathaway uma personagem amorfa e apagada, de pouca ou nenhuma relevância narrativa, e que passa ao lado do sentido operático de transcendência pretendido por Nolan. Parece contudo ter havido uma escolha consciente por parte de Nolan em diminuir a sua importância enquanto "ser humano capaz de registar e transmitir emoções", favorecendo em contrapartida McConaughey. Só assim se explica a estranheza/falsidade do momento em que Chastain comunica friamente a morte de Cain aos viajantes, e que soa a uma mera desculpa para abordar o "prato principal": a acusação sobre a mentira da missão e a respectiva ocultação deliberada («Nunca houve um "Plano A"!»). Quem traiu foi Cain, o pai de Hathaway, agora morto, mas quem necessita de mais apoio afectivo é curiosamente McConaughey, por efeito da acusação da filha - ora, antes de tudo, seria Hathaway a sair mais arrasada com a ideia da traição.

Acaba por haver um desequilíbrio vincado entre a trepidante complexidade científica e narrativa de Interstellar (um bazar cheio de eventos, "aventuras" e de projecção de expectativas face ao desconhecido - sempre amparados em promessas sucessivamente concretizadas de oferecer o mais esplendoroso "sense of wonder" visual permitido pelas tecnologias actuais de efeitos especiais) e a simplicidade simplista  das emoções das personagens (exacerbadas por Nolan) - verdadeiras na acepção que fazem da vida, certo, mas limitadas, e de fácil e superficial encenação (uma fórmula simples para "sacar" o sentimentalismo aos espectadores). Resulta, mas sabe a batota, deixa um sabor amargo na boca - porque é frustrante sentir debilidades numa estrutura grandiosa como esta, de outro modo tão bem erguida, tão cheia de virtudes e pormenores memoráveis. É talvez por aqui que não chega este filme ao estatuto de obra-prima.

Numa das rápidas panorâmicas que a câmara faz ao quarto de Murphy recheado de livros, é possível captar o título de The Stand, porventura a obra literária mais (re)conhecida de Stephen King, uma que lida precisamente com a queda da humanidade às mãos de um vírus assassino, e com o renascimento de pequenas comunidades humanas a partir do (quase) zero civilizacional. Não é um acaso que este título, como outros, seja visível nas prateleiras do quarto de Murphy - pequenas piscadelas de olho culturais inconsequentes, mas que ficam bem a adornar o embrulho. Só que em The Stand, após a queda da civilização, os sobreviventes da razia agrupam-se em torno de dois líderes espirituais com forte representatividade religiosa (o bem e o mal, deus e o diabo). Em Interstellar não há qualquer tentativa de abordagem do divino - diria até que há um cuidado muito particular em não mencionar o assunto (o eterno debate "religião versus ciência" está ausente deste filme, mas recorde-se que em Contact, há vinte anos atrás, o assunto serve de fonte de argumentação recorrente). O que há é um audacioso desvio do foco (da necessidade de conforto espiritual) para a importância dos laços familiares no que respeita à fé e à formulação de valores. Audacioso, mas não totalmente conseguido. A criança Murphy contraria os ensinamentos de História na escola, favorecendo uma versão mais "romântica" dos factos, narrada pelo pai, e entra em brigas com outras crianças que a marginalizam por conta dessa "diferença". Que uma criança idolatre um pai protector e carinhoso é um dado adquirido, mas Nolan pretende ir mais longe na demonstração dessa ideia, pretende provar esse amor inquestionável através das irreverências cúmplices entre pai e filha em relação à norma exterior instituída, e sobretudo firmar, nessa relação a dois (que parece excluir o outro irmão), o sustentáculo lógico (tanto quanto emocional) de todo o filme. Este elo estrutural verdadeiro, mas, mais uma vez, calculista (doseado com as quantidades certas de lágrimas e consequente exploração de um pathos para o resto da vida), acentua o impacto cénico obtido no momento da separação (primeiro) e da presumida traição da confiança (mais tarde, quando as comunicações bilaterais deixam de ser possíveis entre a terra e a missão, e Cain chega ao fim do seu período de vida).

A dúvida está em perceber se esta esquematização emocional é fruto do pouco tempo disponível para expor a relação sem recurso a "corta-mato", ou se é mais um indício das limitações de Nolan na representação realista dos traços humanos/afectivos/comunitários. Pelos filmes que realizou anteriormente, estou mais inclinado a acreditar na segunda hipótese. Em cima desta dúvida, surge uma outra de natureza mais pragmática e objectiva: num filme que aposta tantos créditos na força das relações entre pais e filhos, e em que se nota a preocupação extrema de fazer com que tudo bata certo, como pode a personagem do filho desaparecer dos últimos 10 minutos de filme, como se se tivessem esquecido dela? Nolan pode ter negligenciado este aspecto, mas poderá um pai alguma vez esquecer um filho amado?

Paralelamente, nada me tira da ideia que Nolan fez uma concesão grave à lógica narrativa, ao enviar McConaughey para o espaço com a "roupa que tinha no corpo" (em vez de acondicionar essa partida no período, pelo menos, de alguns dias, e em vez de explorar devidamente a origem das mensagens proféticas enviadas pelo enigmático "fantasma" - algo que poderia revelar-se problemático para o desenrolar do resto da história). Ao tomar esta opção deliberada, forçou ainda mais a artificialidade na construção emocional do momento da separação. Esse momento que é apenas a chave central de toda a sustentação afectiva de Interstellar.

Não estamos no mesmo nivel niilista de grosseirismo pateta de Prometheus, até porque as virtudes de Interstellar compensam largamente as suas debilidades, mas no final fica a ideia de que o filme resulta mais próximo de um Star-Trek mais "a sério" do que de um 2001 mais "emocional", ainda que Nolan tenha apostado seriamente na credibilidade científica da sua ficção (sacrificando com isso, em parte, a inteligência emocional e o respeito dos espectadores?). As duas descidas a terra, nos planetas desconhecidos, obedecem à lógica da resolução rápida de problemas "mecânicos" e dilemas cerebrais surgidos na hora (típicos de episódios televisivos de Star Trek), e não à exploração do mistério e da ressonância mitológica na colocação do homem face ao desconhecido - algo que vinha sendo de certa forma sugerido ao longo da viagem até aí .

Nolan não faz segredo do enorme conjunto de influências e exemplos a homenagear em Interstellar, aos quais o filme deve pequenas "apropriações" referenciais de saborosa recordação cultural que se manifestam um pouco ao longo de toda a narrativa. Em termos de tecnologia (e de "tecnologia de afectos"), Interstellar estabelece a reconciliação entre Homem e Máquina que se havia perdido desde que HAL, o super-computador inteligente, "enlouquecera" em 2001 - A Space Odyssey. A valsa do Danúbio Azul, que na segunda parte dessa obra fazia as vezes de marcha nupcial, musicando um casamento harmonioso entre a humanidade e os avanços e confortos permitidos pela tecnologia (o homem deslizando graciosamente no espaço, na plenitude da sua confiança depositada nas naves que construiu), dava lugar, na terceira parte, ao silenciamento da voz suplicante de HAL pelo único astronauta sobrevivente da missão, colocando uma pedra nessa aliança por tempo indeterminado. Em 2010, sequela de 2001, esboçou-se uma tentativa de recuperação da credibilidade da máquina, com a "reabilitação" de HAL, mas havia o problema da facilidade em esquecer esse filme, esmagado pela monumentalidade mística do seu predecessor, mesmo apesar de nos encontrarmos na presença de uma muito respeitável obra de FC.

Em Interstellar constrói-se então, de maneira mais firme, a ponte para essa reconciliação - as duas I.A. que por lá se passeiam (e que têm a forma do monólito de 2001), não serão bem aquilo que Isaac Asimov visionou ao estabelecer as 3 leis reguladoras do convívio entre robots e humanos, mas exibem toda a fiabilidade/submissão que se poderia exigir de uma Inteligência Artificial state-of-the-art - entenda-se: com risco zero para a hegemonia do Homem. Mais do que isso, estas máquinas foram "humanizadas", dotadas de caraterísticas que as tornam mais próximas do ser humano no que respeita à mobilidade, interacção física, parametrização, e partilha de um mesmo espaço de convívio. A própria voz destas I.A. soa a humana de uma forma muito natural (uma grata surpresa, depois das tentativas "maquilhadas" em Sunshine e Moon). Fora a "fisionomia paralelipípeda", nada faz pensar que ali estão máquinas, algo que contrasta com o tom pautado, monocórdico e destituído de emoções de HAL. Lembremo-nos que este computador não era um robot, não tinha "físico" - era um ser omnisciente, mas estava aprisionado dentro da estrutura de uma nave espacial; não conhecíamos a sua composição interna, nem a extensão ou o volume das componentes electrónicas que o formavam - a única face que nos era mostrada aparecia sob a forma de pequenos globos oculares que tudo registavam. A determinada altura, os robots de Interstellar são colocadas ao nível do seu criador enquanto organismos vivos a respeitar, seres com os quais se conseguem estabelecer laços afectivos. A perspectiva de sacrificar uma destas máquinas em prol da sobrevivência dos astronautas despoleta, da parte da personagem interpretada por Hathaway, uma reacção instintiva muito clara: revolta e tristeza.
 
E se 2001 é a obra de mais directa identificação como matriz estrutural/narrativa para essa influência cinéfila em Interstellar, pelo menos até certa altura na história (porque no lanço final, as duas fitas "discordam": uma observa com veneração o espaço e o infinito, o novo lar celestial, e a outra dobra-se sobre si própria, tornando a focar-se no ponto de origem, o Homem) , a lista estende-se depois a outros marcos significativos na história do cinema de Ficção Científica, exemplos de Metropolis, Star Wars, Alien,  Blade Runner, Close Encounters of the 3rd Kind; mas também a obras de outros géneros menos prováveis: Reds, The Treasure of the Sierra Madre, Jaws, Zerkalo, e o saudoso e algo esquecido The Right Stuff.

Poderia referir outros tantos casos de provável fonte inspiracional; mencionei Greed mais acima, mas há também os planos no final do filme a mostrarem o interior da estação espacial Cooper, recuperando estrondosamente o nosso desejo de ver Rendezvous with Rama adaptado ao cinema por alguém que entenda o espectáculo implícito na complexidade e geometria cénica do projecto. Mesmo assim, à semelhança daquilo que sucedeu com Inception, o filme anterior de Nolan (os mundos virtuais de Philip K. Dick vêm num instante à memória), Interstellar permanece na sua essência uma obra fresca e original, poética e lírica a espaços, furiosa e ribombante noutros momentos (as composições musicais de Hans Zimmer bordam a insanidade sonora, mas encaixam que nem uma luva na monumentalidade do projecto), uma viagem empolgante recheada de "guloseimas tecnológicas" (o "sal" da Ficção Científica) e conceitos científicos complexos, tornados simples pela mão do cinema, à descoberta de possíveis realidades futuras, e que deve acima de tudo à capacidade criativa e concretizadora de Nolan, por esta altura um autor firmado por direito próprio.

Como último apontamento sobre a tecnologia utilizada para filmar Interstellar, gostaria de referir a escolha consciente pela não utilização de qualquer tecnologia de 3D, e pela opção de captura da luz em película (em alternativa ao formato digital, que praticamente domina o mercado), sendo que uma boa parte das sequências terá sido gravada com fita de 70mm IMAX. O poema de Dylan Thomas, Do Not Go Gentle Into That Good Night, frequentemente repetido ao longo do filme, ganha, atendendo a isto, uma dimensão extra-narrativa, e parece-me que também por aqui Nolan tenta comunicar subliminarmente com os powers that be do meio cinematográfico. Diz ele: Rage, rage against the Dying of the Light! Parece-vos uma mensagem suficientemente clara?

Nota final: num período em que a ESA acaba de conseguir fazer aterrar, pela primeira vez na história da humanidade, uma sonda num cometa, e em que o habitualmente mediático programa espacial Norte-Americano permanece desaparecido das bocas da opinião pública por falta de iniciativas (e de investimento), Interstellar resulta de forma ainda mais incisiva como um recado de alerta à NASA: temos de começar a olhar para novamente para as estrelas.