23/01/15

"3,5 segundos", ou a continuidade e a elipse segundo o Código Hays

O seguinte excerto foi retirado de um pequeno ensaio do filósofo Slavoj Žižek, intitulado David Lynch ou a arte do sublime ridículo, constante na obra Lacrimae Rerum  (em Portugal, publicações Orfeu Negro). 

Através dele podemos ficar a conhecer os meandros do Código de Produção que regulamentou/censurou as obras cinematográficas durante os anos 30 a 60 em Hollywood (e ainda regulamenta, embora apoiando-se noutro tipo de critérios). Podemos também apreciar como a imposição de certas normas de cariz sexual acabavam por ter um efeito quase contrário aos seus propósitos, e como essas normas podiam ser habilmente contornadas, através da sugestão narrativa. 

De uma perspectiva psicanalítica, e considerando o filme Casablanca, Žižek diz-nos o seguinte:

Lenine gostava de sublinhar que, muitas vezes, podíamos obter conhecimentos importantes das nossas próprias fraquezas a partir das percepções de inimigos inteligentes. Assim, uma vez que o presente trabalho procura fazer uma interpretação lacaniana de Estrada Perdida, de David Lynch, pode ser útil começar com uma referência à «pós-teoria», a recente orientação cognitivista dos estudos cinematográficos que estabelece a sua identidade com base na rejeição completa dos estudos lacanianos de cinema. Naquilo que é provavelmente o melhor ensaio de Post-Theory, o livro que representa uma espécie de manifesto desta orientação, Richard Maltby centra-se na cena curta, mas famosa, que inicia o último quarto do filme Casablanca: Ilsa Lund (Ingrid Bergman) vai ao quarto de Rick Blaine (Humphrey Bogart) para obter os salvo-condutos que lhe permitirão, a ela e a Victor Laszlo, seu marido e líder da Resistência, fugir de Casablanca para Portugal, e daí para a América.
Rick recusa-se a dar-lhos e ela puxa de uma pistola e ameaça-o. Ele riposta: «Vá, dispara, é um favor que me fazes!» Ela vai-se abaixo e, coberta de lágrimas, começa a contar-lhe por que razão o deixou em Paris. Quando lhe está a dizer «Se soubesses como te amava, como ainda te amo», eles estão abraçar-se num grande plano. A sequência é interrompida por um fundido encadeado que abre para um plano de 3,5 segundos da torre do aeroporto à noite, com os projectores a varrer o céu, a que se segue outro fundido que nos traz de novo para um plano filmado do exterior da janela do quarto de Rick, onde este está de pé a olhar para fora e a fumar um cigarro. Volta-se para o interior do quarto e diz «E depois?». E ela continua a história…

A pergunta que surge aqui imediatamente é a seguinte: o que aconteceu entrementes, durante o plano de 3,5 segundos do aeroporto - fizeram-no ou não? Maltby tem razão quando afirma que, quanto a isto, o filme não é simplesmente ambíguo: ele indica duas coisas muito claras, embora se excluam mutuamente - fizeram-no e não o fizeram, ou seja, o filme oferece sinais evidentes de que o fizeram, e simultaneamente sinais evidentes de que não o podiam ter feito. Por um lado, uma série de sinais codificados sugere que o fizeram, isto é, que o plano de 3,5 segundos representa um período de tempo mais longo (o fundido do par que se abraça apaixonadamente, que simboliza geralmente que o acto vai seguir-se ao desaparecimento da imagem; o cigarro posterior, que constitui também um sinal clássico do relaxamento após o acto; e mesmo a conotação fálica ordinária da torre). Por outro lado, uma série de sinais paralelos indica que não o fizeram, isto é, que o plano de 3,5 segundos da torre do aeroporto corresponde ao tempo diegético real (a cama por trás não está revolvida, a conversa entre eles parece prosseguir sem interrupções; etc.) Mesmo quando, no diálogo final entre Rick e Laszlo no aeroporto, eles afloram directamente os acontecimentos dessa noite, as suas palavras podem ser interpretadas das duas maneiras:

RICK: Disse que sabia de mim e da Ilsa?
VICTOR: Sim.
RICK: Não sabia que ela esteve em minha casa a noite passada quando o Victor estava… Ela veio buscar os salvo-condutos. Não é verdade, Ilsa?
ILSA: É.
RICK: Ela tentou tudo para os obter e não conseguiu nada. Fez o melhor que pôde para me convencer de que ainda estava apaixonada por mim. Isso pertence ao passado; para o ajudar, fingiu que não era assim, e eu deixei-a fingir.
VICTOR: Compreendo.

A solução de Maltby é insistir em que esta cena é um bom exemplo de como Casablanca «se constrói deliberadamente de modo a oferecer fontes de prazer distintas e alternativas a duas pessoas que se sentam uma ao lado da outra no cinema», ou seja, que "pode tocar um público «ingénuo» do mesmo modo que um «sofisticado». Embora, ao nível da sua linha narrativa superficial, o filme possa ser interpretado pelo espectador como estando de acordo com os códigos morais estritos, oferece simultaneamente aos «sofisticados» indícios suficientes para construir uma linha narrativa alternativa, sexualmente muito mais ousada. Esta estratégia é mais complexa do que parece: precisamente porque sabemos que estamos de certo modo «cobertos» ou «absolvidos de pulsões de culpa» pela história oficial, são-nos permitidas fantasias sórdidas. Sabemos que estas fantasias não são «a sério»; aos olhos do grande Outro, não contam… Assim, a única correcção que teríamos de fazer a Maltby seria a de que não precisamos de dois espectadores sentados um ao lado do outro; um e um só espectador, dividido em dois, é suficiente.

Falando em termos lacanianos, durante os indecorosos 3,5 segundo, Ilsa e Rick não fizeram nada para o grande Outro, para a ordem das aparências públicas, mas fizeram para a nossa imaginação fantasmática sórdida. Esta é a estrutura da transgressão inerente no seu estado mais puro, isto é, Hollywood precisa de ambos os níveis para funcionar. Em termos da teoria do discurso elaborada por Oswald Ducrot, podemos dizer que temos aqui a oposição entre pressuposição e suposição: a pressuposição é subscrita directamente pelo grande Outro, não somos responsáveis por ela, enquanto a responsabilidade pela suposição recai inteiramente sobre os ombros do leitor (ou do espectador). O autor do texto pode sempre afirmar: «Não é da minha responsabilidade o facto de os espectadores extraírem essas conclusões sórdidas do enredo do filme!» E, para pôr isto em linguagem psicanalítica, esta oposição é evidentemente a oposição entre Lei simbólica (o Ego-Ideal) e o superego obsceno. Ao nível da lei simbólica pública, nada acontece, o texto está limpo, enquanto, a outro nível, ele bombardeia o espectador com o imperativo do superego «Goza!», isto é, dá livre curso à tua imaginação indecente. Dizendo-o ainda de outro modo, estamos aqui perante um exemplo claro da clivagem fetichista, da estrutura da negação – a estrutura do «je sais bien, mais quando même…». A consciência de que eles não o fizeram liberta a nossa imaginação sórdida – podemos entregar-nos a ela, porque estamos absolvidos da culpa pelo facto de, para o grande Outro, eles decididamente não o terem feito… e esta leitura dupla não é um mero compromisso da parte da Lei, no sentido em que a Lei simbólica está apenas interessada em manter as aparências e nos deixa livres de exercer a nossa imaginação sórdida, desde que isso não invada o domínio público, ou seja, desde que salve as aparências. A própria Lei precisa do seu suplemento obsceno, apoia-se nele e é ela que o gera. Então, porque precisamos aqui da psicanálise? O que é aqui propriamente inconsciente? Será que os espectadores não estão perfeitamente cientes dos produtos da sua imaginação sórdida? Podemos situar a necessidade da psicanálise num ponto muito preciso: aquilo de que não temos consciência não é nenhum conteúdo secreto profundamente recalcado, mas o carácter essencial da própria aparência. As aparências são importantes. Podemos ter as nossas múltiplas fantasias obscenas, mas é importante saber quais é que se vão integrar no domínio público da Lei simbólica, do grande Outro.

Maltby tem, pois, razão ao acentuar que o infame Código de Produção de Hollywood dos anos 30 e 40 não constitui simplesmente um código de censura negativo, foi também uma codificação e uma regulamentação positivas (produtivas, como diria Foucault) que criaram o próprio excesso cuja representação directa impediam. É elucidativa a conversa entre Josef von Sternberg [realizador de cinema] e Breen [director do Código de Produção], relatada por Maltby. Quando Sternberg diz: «Nesta altura, os dois personagens principais têm um breve interlúdio romântico», Breen interrompe-o: «O que está a querer dizer é que os dois foram para a cama. Foram foder.» Indignado, Sternberg riposta: «Mr. Breen, está a ofender-me.» Breen: «Por amor de Deus, deixe-se de disparates e enfrente as coisas como elas são. Se quiser, podemos ajudá-lo a fazer uma história de adultério, mas não se continua a chamar a uma boa fornicação um “interlúdio romântico”. Ora, o que fazem estes dois? Beijam-se e vão para casa?» «Não», responde Sternberg, «fodem.»«Muito bem», exclama Breen, dando uma palmada na mesa, «assim já percebo a sua história.» O realizador completou o esboço da história, e Breen disse-lhe como podia arranjá-lo de modo a respeitar o código. Assim, a proibição, para funcionar como deve ser, tem de se basear na consciência clara do que realmente aconteceu ao nível da linha narrativa proibida: o Código de Produção não se limitava a proibir alguns conteúdos, ele codificava a sua expressão cifrada.

Contextualizando a situação Casablanca através das imagens:















... 3,5 segundos a olhar para "a torre" ...










01/01/15

Murder, My Sweet






Dame May Whitty conversa com Ingrid Bergman em Gaslight - Meia Luz, de George Cukor - 1944






















Robert Walker e Farley Granger em Strangers on a Train - O Desconhecido do Norte-Expresso, de Alfred Hitchcock - 1951