21/02/15

O vício de matar




«Watch out now take care,
Beware of greedy leaders
They'll take you where you should not go,
While Weeping Atlas Cedars
They just want o to grow -
Beware of darkness.
»
George Harrison - Beware of Darkness - 1970


Não é preciso recuar muito no tempo para nos depararmos com exemplos de "colheitas duplas" em anos vintage na carreira de Clint Eastwood enquanto cineasta. Em 2008 houve lugar a Changeling — A Troca e a Gran Torino, e em 2006 a Flags of Our Fathers — As Bandeiras dos Nossos Pais e a Letters from Iwo Jima — Cartas de Iwo Jima. Mais do que encarrilar pela retórica inócua e inconsequente de tentar estabelecer qual dos filmes é o "melhor" e o "pior" de cada par, importa celebrar a vitalidade criativa de um dos grandes realizadores americanos contemporâneos ainda em actividade, e saudar a forma como, aos oitenta anos, conserva intacta a herança do cinema de recorte mais clássico (aquele que assenta na força da estruturação narrativa, no "dom da palavra do contador", para conseguir transformar de forma eficaz um conjunto de ideias dispersas numa boa história), enquanto abraça ao mesmo tempo, e sem preconceitos, as possibilidades estéticas das novas tecnologias. Eastwood é não só um cineasta americano, um cineasta da América, um narrador profundamente apaixonado pela riqueza e complexidade histórica, social e cultural da nação, mas também um "politólogo" interessado em expôr o mito, em denunciar os seus vícios e contradições. Assim se explica como na "colheita dupla" vintage de 2014 surgem filmes tão díspares, e no entanto tão coerentemente enraízados na psique americana, como são Jersey Boys (um entretém cultural sumptuoso e muitíssimo delicado, que se debruça sobre a banda de Frankie Valli & the Four Seasons), e American Sniper, uma coisa "mais séria", mais trágica, mais fracturante, com um argumento moral a defender. São ambos baseados em factos verídicos — mas convém aqui sublinhar o "baseados", não vá a parcela da ficção ganhar o volume de uma verdade social com a qual a história não pode depois competir.

Num primeiro soslaio pelo poster de American Sniper é possível que a bandeira americana se evidencie, mais até do que a figura prostrada de Bradley Cooper — esta bandeira, o mais importante símbolo representativo americano, marca presença assídua nos filmes de Eastwood, se não graficamente, pelo menos em "espírito". Havia também uma bandeira americana no poster de Flags of Our Fathers, e é por aqui que podemos começar a estabelecer um factor de identificação que contextualiza American Sniper na obra deste realizador, e também de certa forma na história da América recente. Entre estas duas obras, saltamos de uma guerra para outra, da 2ª Guerra Mundial para a Guerra do Iraque, mas enquanto o tempo cronológico avança 70 anos, o "território ideológico" parece manter-se (o tempo passa, mas as mentalidades resistem), e com ele a fixação na "grande mentira". Flags of Our Fathers (em que "as bandeiras" do título são sinónimo de "valores") denunciava a fabricação hipócrita de "heróis de guerra" a partir de uma fotografia onde estava a ser erguida a "bandeira da vitória". Uma fotografia forjada pelas instancias no poder, que vendeu um ideal de nobreza e dignidade à população para ajudar a financiar o esforço de guerra, mas que criou paralelamente uma crise existencial, um permanente estado de tormenta, na vida dos protagonistas fotografados. Aqueles que sabiam a verdade. Heróis, sim, mas não daquela maneira. American Sniper retoma a questão da ocultação da "verdadeira verdade", da fragilidade do conceito de "herói", mas fá-lo de uma forma mais subversiva, a partir de dentro — não são as instituições políticas que impõem esse "estatuto", essa ocultação, é a mente do protagonista, deformada pela experiência na guerra, que o deseja.



Neste campo, parece-me que o filme vai baralhar muitas agendas apostadas em acusar Clint Eastwood de propaganda pró-América e de glorificação da guerra, uma vez que a mensagem acaba por não resultar totalmente clara. O ponto de equilíbrio é reconhecidamente complicado de expor sem gerar equívocos, e basta recordar a forma "exuberante" como Coppola montou e musicou o ataque de helicópteros em Apocalypse Now para obtermos um factor comparativo relevante. A encenação tecnicamente apurada e "limpa" da guerra, tornando-a num "espectáculo empolgante" de assistir, a adrenalina imediatista dos combates, e a exposição daquilo que passa na mente de alguns soldados pró-intervencionismo no campo de batalha, tendem a deturpar essa mensagem, e podem mesmo inverter a sua significância. Talvez antevendo esta realidade, Eastwood esforçou-se por mostrar pedagogicamente ao espectador, e de forma algo paternalista (que no filme passa por ser literal), o que está em causa, directa e pausadamente, palavra por palavra.

No filme The Hurt Locker - Estado de Guerra (2008), um objecto cinéfilo que se regia por princípios orientadores de denúncia semelhantes aos de American Sniper (embora os mostrasse de uma perspectiva radicalmente mais "alucinada"), Kathryn Bigelow iniciava as hostilidades com uma sentença: "A guerra é como uma droga!", pretendendo com isto aludir a duas coisas: o estado de "excitação" —o "kick de adrenalina"— que induz nos momentos de tensão/combate, e o vício que não larga depois os soldados que sentiram essas emoções, impelindo-os a quererem novamente passar por elas, a quererem viver permanentemente nelas, e tornando-lhes a vida "normal" de civil num inferno — não pelos horrores que presenciaram, mas pelo desejo de retornarem a essa experiência viciante. American Sniper aborda estas questões centrando a narrativa na ficcionalização de uma história verídica —a do atirador furtivo mais mortífero da história da America, Chris Kyle—, e inserindo a(s) sua(s) mensagens morais nas quatro comissões que este soldado realizou no Iraque, ao longo de vários anos, totalizando mais de mil dias em cenário de guerra. A cada regresso a casa, a barreira comunicativa vai-se tornando mais opaca, a mente de Kyle cada vez mais fechada na dependência obsessiva, até ao ponto do total alheamento doméstico/familiar. As inúmeras e desesperadas tentativas feitas pela mulher (Sienna Miller) para que Kyle se aperceba daquilo em que se está a tornar chocam, a determinada altura, contra um muro de indiferença — a mente dele está noutro lado, e não consegue, nem pretende, de lá sair.

Tornando um pouco atrás, à infância do "herói", e tornando à questão dos "valores dos nossos pais", Eastwood é muito claro. Diz o pai para a criança Kyle e para o seu irmão mais novo: «Há três tipos de pessoas neste mundo: as ovelhas, os lobos, e os cães pastores. As ovelhas são aqueles que não reagem quando os lobos aparecem para as devorar; os lobos são aqueles que praticam o mal sem remorsos; e os cães pastores são aqueles que resgatam as ovelhas dos lobos. Nesta casa não há ovelhas!!!, e se vos apanho a agirem como lobos, encho-vos de porrada.» A história de American Sniper mostra a forma como uma pessoa repleta de ideais de "cão pastor" se transforma gradualmente num "lobo", quando exposta aos transtornos emocionais da guerra (sendo que o irmão mais novo, uma "ovelha", passará também pela guerra, mas permanecerá uma "ovelha" — há um choque ideológico sugestivo quando os dois se encontram por acaso no Iraque, e Kyle diz para o outro, "estou orgulhoso de ti!" — a resposta que recebe não é bem aquilo que esperaria).

Mais para o final do filme, e para fechar o ciclo desta alegoria sobre os mecanismos estruturantes do mal, a desumanização progressiva, e sobre o esvaziamento involuntário de valores morais, o "lobo" em que Kyle se metamorforizou ataca instintivamente um "cão pastor", numa formulação mais uma vez literal e directa — aqui em cenário doméstico, num clima de absoluta paz. É esta a mensagem do filme. A pretensa glorificação da guerra existe, mas é precisamente (e ironicamente) demonstrada pelo inverso daquilo que os detractores desta posição tentam indicar: o filme mostra a existência dessa glorificação, sempre acompanhada pela bandeira americana, no exército e na sociedade americana, mas fá-lo de forma a poder expor e denunciar as suas ratoeiras, os seus vícios manipuladores, as suas incorrectas interpretações.

Infelizmente, a força desta mensagem fica um pouco diluída na tal "zona cinzenta", onde também entra em jogo a personalidade do ser humano Kyle, e todas as dúvidas e certezas que o atormentam no "momento do disparo". Ele, que sucumbe à armadilha da adrenalina (já não é a segurança nacional nem os ideais democráticos que lhe interessam, não é a felicidade da sua família, a segurança das tropas que protege do alto dos edifícios, ou a punição dos inimigos que mataram os companheiros mais próximos no terreno, é apenas o "kick da guerra", a sensação de invencibilidade, e a obsessão de conseguir superar os desafios que estão de facto à sua altura), ele, dizíamos, é paralelamente homenageado por Eastwood ─ uma homenagem sentida a um autêntico herói americano, mas que é exultado patrioticamente pelos piores motivos. As imagens finais do seu funeral (footage real) deixam-nos um certo amargo na boca, pela ambiguidade que podem gerar num filme com uma clara mensagem política. As bandeiras americanas espalhadas ao longo da estrada, prestando a última saudação ao grande guerreiro que vai a enterrar, ignoram que o "cão pastor" se havia tornado tragicamente no "lobo" que juraram aniquilar.

O mundo precisa de aproveitar os "cães pastores" disponíveis —para manter a defesa do ideal da liberdade democrática—, mas o preço a pagar por essa necessidade é a geração consequente, e deliberada, de novos "lobos". Os heróis são também as vítimas dos conflitos — os defensores tornam-se agressores, gostam de ser agressores. Este filme não é um libelo anti-guerra (pelo contrário, parece defender a sua opção - "Não sente arrependimento por ter morto mais de 150 homens na guerra?", "Não, sinto antes um peso na consciência por não ter conseguido salvar mais vidas americanas no campo de batalha..."), mas é uma obra que entende a seu absoluto terror e coloca a nu os seus dilemas e paradoxos. Não há nada mais pungente aos olhos da sociedade do que um herói tornado mártir pela via da tragédia, mas o que é que ao certo deve ser considerado trágico num caso como o de Chris Kyle?

«General Corman: Well, you see, Willard, in this war, things get confused out there. Power, ideals, the old morality, and practical military necessity. But out there with these natives, it must be a temptation to be God. Because there's a conflict in every human heart, between the rational and irrational, between good and evil. And good does not always triumph. Sometimes, the dark side overcomes what Lincoln called the better angels of our nature
 — Apocalypse Now — 1979

09/02/15

Margin Call - O Dia Antes do Fim - J.C. Chandor (2011)



«You know, the feeling that people experience when they stand on the edge like this isn't the fear of falling - it's the fear that they might jump... »

Estamos no "momento zero" da grande crise financeira de 2007-2008, e vamos acompanhar as primeiras horas do "acordar para a realidade" numa das grandes companhias financeiras americanas no activo por esses dias (não se chega a saber o nome desta firma, mas vários paralelos, a partir da história que hoje se conhece, são inferíveis). O "momento" zero é o ponto no tempo em que alguém se apercebe, sem margem para dúvidas, de que um conjunto de fórmulas financeiras que serviam de modelo estrutural para as trocas comerciais de grande parte dos activos financeiros de risco (com alto grau especulativo e de alavancagem) estavam erradas na sua essência, de que a enorme bolha que se vinha formando nos últimos anos estava prestes a rebentar, e de que o colapso era inevitável. Significava isto, em trocos, que uma boa parte dos activos financeiros dessa empresa valiam zero, ou menos do que zero (tornando-a subitamente "ilíquida", e para lá de qualquer hipótese de recuperação), e que na mesma situação se encontravam todas as outras empresas do sector - nomeadamente bancos e agências de rating. Significava também que, assim que esta informação fosse do conhecimento público, todo o mundo financeiro se desmoronaria num rápido processo de queda em dominó, efeito a propagar-se por todos os sectores comerciais e por todos os países do mundo. Milhares de empresas na falência, milhões de desempregados, e uma enorme insegurança e desconfiança social nas instituições financeiras e nos reguladores económicos. Como de resto veio na realidade a suceder. Em Portugal, ainda estamos no fundo do poço que essa crise ajudou a cavar - e vamos tendo exemplos diários de como a história se repete, apesar de todos os avisos do passado, com o caso BES em primeiro plano.

No filme, partimos então do momento em que um especialista matemático/financeiro (Zachary Quinto) se dá conta deste pesadelo, e de como o fluxo desta informação vai subindo os vários degraus hierárquicos dentro da empresa, até chegar ao homem que é pago especificamente para avaliar contextos e tomar decisões (Jeremy Irons). Segundo as palavras do próprio, «Há três formas de ser bem sucedido neste mercado: ser o primeiro, ser mais esperto do que os outros, ou fazer batota. E eu não faço batota!» A questão da batota ganha aqui contornos de ironia, apesar da sua significância ser estritamente verdadeira naquele contexto prático: os produtos que esta companhia comercializa estão "dentro da lei regulada", e «Nós vendemos apenas aquilo que o investidor está disposto a comprar - por sua livre vontade.» O nome do jogo passa a ser, a partir dessa altura, "sacudir a água do capote" o mais rapidamente possível, vender tudo antes que outras empresas se apercebam do que está a suceder, de forma a minimizar o prejuízo. De outra forma, capitalizar ao máximo estes produtos que valem zero, vendendo-os a outras empresas ou investidores. A qualquer custo. Vender tudo durante a manhã do dia seguinte, e deixar que sejam os outros a ficar na ruína.

O filme é uma espécie de actualização de Wall Street de Oliver Stone, antecipando também os temas morais de O Lobo de Wall Street, aqui numa hipotética versão mais sóbria, sem os excessos nem os deboches dessa obra (que, apesar de tudo, estão lá nas entrelinhas, não são é esfregados na cara do espectador), sem os travelings de câmara vertiginosos nem os truques de edição desenfreada de Thelma Schoonmaker, e sobretudo sem gritarias ou pessoas a perderem as estribeiras. Estas pessoas, que se quedam sem reacção no momento em que são confrontadas com os "cálculos", ficam antes com a preocupação estampada no rosto a cada minuto que passa - uma preocupação não pela incerteza do futuro, mas pela certeza da queda no abismo (a incerteza regista-se antes em relação à magnitude dessa queda). É um filme de grandes actores e de grandes interpretações (o elenco é composto por um punhado de notáveis), embora todas bastante controladas e contidas, o que contribui para tornar o ambiente de catástrofe iminente mais pesado e sombrio, pois não há factores de distração "extra". O modo pausado e directo como Chandor filma estas personagens, como lhes dá tempo para poderem absorver a significância de cada palavra e de cada diálogo, e como as contextualiza depois dinamicamente no espaço — ora nos pisos superiores de uma dessas torres de vidro a bater nas nuvens, em escritórios open-space a abarrotar de monitores carregados de números e gráficos complexos, ora cá em baixo nas ruas da cidade, no meio dos "comuns mortais" que ignoram a tempestade que se aproxima — contribui em sintonia para esse silêncio sepulcral que antecipa o cataclismo.

É também um filme em que somos confrontados com os tubarões da alta finança, aqueles que vivem no topo da pirâmide, que controlam as equações financeiras pelas quais a sociedade de move, e que apenas vêem uma coisa à frente: dinheiro. O tipo de gente que conhece a história, conhece os mecanismos regulatórios, consegue prever os ciclos de mudança, e sabe exactamente que medidas necessita de tomar para capitalizar cada acontecimento. E para que uns ganhem e permaneçam impunes, outros têm necessariamente de perder e de cair. É ainda um filme que mostra como a vertigem de chegar a uma posição dessa "altura intocável" corresponde ao ligeiro empurrão necessário para "vender a alma ao diabo". Como refere a personagem de Kevin Spacey à de Jeremy Irons ao cair do pano: «Eu não vou aceitar a proposta por causa do teu discurso, mas vou aceitar porque preciso do dinheiro.» Não há inocentes em cargos empresariais desta "elevação", apenas autómatos que há muito perderam a sua essência humana e que agora estão racionalmente orientados para atingir um objectivo concreto. Tudo o resto é paisagem. O filme termina com o plano sugestivo de Spacey a enterrar —em sentido literal— os últimos vestígios emocionais que o ligam à humanidade. E a pá a escavar na terra continua a ouvir-se já com os créditos a rolarem.